Entre flores, tambores e corpos que dançavam em harmonia, um sábado comum se transforma em celebração sagrada e festa. A manhã era quente, não apenas pelo sol forte, mas pela vibração de fé que preenche o ar.

Foi essa energia que atraiu mais de 250 pessoas ao templo Ilè Okowoo Asé lyá Lomin’OsáEgbé Òmórisá Sangó, no Jardim Universitário, no último sábado de julho, para a festa dedicada a Ogum e Oxóssi. Tradicional, a celebração integra o calendário anual da casa e, neste ano, teve um significado especial.

A razão é simbólica: a casa de axé, fincada na tradição yorubá e nos saberes ancestrais celebrou 15 anos de caminhada espiritual, mantendo viva a força do asé, cultivando a fé, o acolhimento e a luta por respeito às religiões de matriz africana.

Mesmo com o espaço lotado, o silêncio era absoluto. As pessoas se acomodavam como podiam – em cadeiras, bancos ou de pé – contornando o ambiente decorado com flores e folhas de palmeira.

Mas o que se via naquela manhã era apenas a face mais visível de um ritual que havia começado na véspera, quando o Ilè foi preparado para receber os orixás homenageados, seus convidados e a comunidade.

De acordo com o Babalorisá Bosco D’Sango, as imolações são feitas ao raiar do dia pelos filhos e filhas-de-santo. Primeiro, a imolação para o orixá Exu, o primeiro a ser saudado, mas ele não participa da festa. Em seguida, são realizadas as imolações destinadas aos orixás celebrados, Ogum e Oxóssi.

Os atabaques já estavam posicionados. E, por volta das 10h30 os tocadores tomaram seus lugares e deram início ao xirê, sequência ritualística de orins (cânticos sagrados em iorubá). Segundo praticantes e estudiosos do candomblé, é por meio do xirê que os orixás são evocados. Os orixás representam a força que emana de cada elemento da natureza. Os atabaques falam.

E falam de muitas formas. Tudo acontece sob a batida de três atabaques – rum, rumpi e lé – instrumentos que não apenas marcam o ritmo, mas “conversam” com os orixás. O rum é o solista, que conduz a dança. O rumpi e o lé completam a marcação, reproduzindo modulações da língua yorubá, uma língua cantada, viva nos cantos e nas batidas.

Ao compasso desse diálogo sagrado, um a um, na ordem do xirê, as filhas-de-santo entram na roda. A movimentação cresce. Ao som dos atabaques, o corpo de cada uma começa a incorporar os orixás. São distribuídos pães e frutas aos presentes. As frutas e os pães são símbolo da fartura de Oxóssi, que representa as matas.

O xirê avança, e com ele cresce a expectativa. A hora mais esperada chegou. O Babalorisá anuncia que os orixás estarão à disposição para quem quiser se aproximar, abraçá-los ou cumprimentá-los. Naquela tarde, vieram Ogum (metal), Oxumarê (o arco-íris), Iemanjá (o mar) e Iansã (os ventos). O contato com os orixás, que representam a força que emana de cada elemento, não acontece por palavras. É pura energia, o axé se manifesta no corpo.

O tempo corre no ritmo do sagrado. É quase 13 horas quando o toque muda. Toca orin para Oxalá (o ar), o criador da humanidade segundo a tradição do candomblé.

Yansã chega por último, puxada por Ogum. “Ogum a chama para uma guerra. Uma guerra simbólica”, observa o babalorisá Bosco de Sango.

O xirê se aproxima do fim, mas a celebração continua em outro formato. Ao fim da roda, a tradicional feijoada de Ogum é servida. Comer também é parte do sagrado.

O tempo do candomblé é outro. Nele, Ogum avança com sua espada de ferro, enquanto Oxóssi, o caçador, abre os caminhos na mata. E o povo festeja com fé, respeito e presença.

No compasso dos tambores e no sabor da partilha, a celebração se despede sem realmente acabar. Porque, para quem vive o axé, cada encontro deixa sementes que brotam no corpo, na memória e no tempo.

*FÁTIMA LESSA  é jornalista e mestra em política social. Trabalhou na imprensa de São Luís, cobrindo Cidades no jornal O Imparcial e O Estado do Maranhão. Também atuou no jornal A Gazeta e no extinto jornal Nosso Tempo, em Foz do Iguaçu (PR), nas Três Fronteiras: Brasil-Paraguai-Argentina. Em Cuiabá trabalhou nos jornais A Gazeta e Folha do Estado. Atua como freelancer no jornal O Estado de S. Paulo. Já trabalhou na Folha de S. Paulo, assessorias de sindicatos e ONGs.

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Tudo acontece sob a batida de três atabaques – rum, rumpi e lé – instrumentos que não apenas marcam o ritmo, mas “conversam” com os orixás. (Fotos cedidas por Fátima Lessa)