Em meio à Lima, capital do Peru, um local sagrado para as populações pré-incas — ou o que sobrou dele — resiste ao tempo. O Sítio Huaca Pucllana impressiona por estar bem ao lado de casas e prédios modernos da cidade. No local, há 1,6 mil anos, pessoas faziam sacrifícios humanos e de animais para acalmar e pedir proteção à Pachamama (mãe Terra), entre outras divindades.
A GALILEU visitou o local durante uma visita guiada nas imediações do Museu do Sítio Pucllana. Inaugurado em 1984, ele abriga um acervo de bens culturais resultantes de escavações arqueológicas realizadas desde 1981 pelo Projeto de Pesquisa, Conservação e Valorização da Huaca Pucllana.
Além do circuito turístico do sítio arqueológico, o lugar conta com um salão de exposições, um parque de flora e fauna nativas, depósitos, escritórios e uma área administrativa. Há também um restaurante para os turistas admirarem as ruínas enquanto se deliciam com a culinária peruana.
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O perímetro escavado apresenta atualmente as ruínas de uma pirâmide truncada de 25 metros de altura e os restos de um conjunto de pátios, praças e muros. As paredes são todas feitas com a chamada técnica “livreiro”, que consistia em moldar tijolos de adobe à mão no formato de livros e empilhá-los deitados para prevenir a destruição da arquitetura por terremotos – relativamente comuns nesse ponto da América do Sul.
O nome Huaca Pucllana significa “lugar sagrado para jogar” e foi recuperado pela etno-historiadora María Rostworowski em documentos coloniais dos séculos 16 e 17, nos quais os nativos se referiam assim ao recinto.
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Pirâmide pré-inca
A guia turística Bianca Mariela, que trabalha no Museu do Sítio Pucllana, conta que a construção mais importante era a pirâmide, com originalmente 36 metros de altura — 11 metros a mais do que hoje. “Nas pirâmides do Egito, havia uma forma triangular, talvez lisa nos exteriores, mas não é o caso de Pucllana. Essa pirâmide parecia como um grande bolo retangular com sete pisos. Os muros estavam todos pintados e o acesso mais alto era mediante rampas, não havia escadas nessa construção”, descreve.
No período inicial de uso do terreno, nos anos 400 d.C., havia um acesso à pirâmide através de uma rampa principal, mas, com o passar dos anos, os habitantes mudaram muito sua arquitetura, fazendo com que a entrada inicial fosse bloqueada. Um novo ingresso surgiu na parte superior por volta do ano 600 d.C.
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“Quem podia subir? Os mais poderosos: a pirâmide tinha acesso exclusivo a sacerdotes e líderes”, explica Mariela. “Desse ponto, podia-se talvez ver o mar, agora já não se pode. Estamos em uma cidade moderna no bairro de Miraflores. Agora, a distância ao mar é de 2 km. Em dias muitos claros, porém, por trás dos edifícios se pode ver um pouco do mar”.
Sacrifícios humanos
Não havia moradias, já que cada zona escavada no terreno era de uso religioso dedicado ao mar. Em diferentes huacas (centros religosos), havia tipos específicos de sacrifícios. No caso da Huaca Pucllana, entre 400 e 700 d.C., cerca de 90% dos rituais ceifavam a vida de mulheres.
“A maioria dos enterros era de mulheres de cerca de 16 a 25 anos de idade, que já tinham sido mães”, especifica Mariela. “Por que esta característica? Não sabemos ainda. Não há escrituras, mas acreditamos que as mulheres estão relacionadas com a abundância e a fertilidade“.
No topo das estruturas da huaca, arqueólogos descobriram plataformas, uma área de oferendas e um cemitério que foi sendo adaptado ao longo dos anos. Hoje, não há mais restos mortais expostos, mas apenas em uma única área de irrigação foram encontrados oito corpos relacionados a rituais de sacrifício. Ao todo, foram identificadas 30 ossadas de mulheres.
Também eram alvo de sacrifícios ilhamas e tubarões. Estes últimos eram símbolo de fortaleza, valentia e conexão máxima com o mar, por isso, eram devorados durante banquetes e seus restos (incluindo dentes e barbatanas) eram depositados em potes de oferendas. “Os tubarões, pelo menos no Peru, nesta parte de Lima, ficam muito em alto-mar. Extrair um tubarão era um risco, muitas pessoas não sobreviviam e os botes não eram muito avançados, eram, melhor dito, balsas trabalhadas em fibra vegetal”, observa a guia turística.
Em alguns potes menores, arqueólogos encontraram inclusive vértebras e dentes de três espécies: tubarão-azul, tubarão-cobre e tubarão-branco. O último curiosamente não se sabe como chegou à Pucllana, visto que não é típico do mar da região. Mas também havia representações em cerâmicas e têxteis de outras criaturas marinhas, como peixes e lobos-marinhos.
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Mariela explica que o mar tinha um papel central para as populações pré-incas, formadas inicialmente por pescadores antes de se dedicarem à agricultura. Em meio ao clima desértico do Peru, o mar era fonte de alimento — mas também de perigo, já que sua calmaria podia se transformar em fúria, tirando a vida de quem se aventurava em suas águas. Em outras palavras, o mar era visto como um ser vivo, e essa força era celebrada na Huaca Pucllana.
Contudo, as comunidades eram politeístas, ou seja, adoravam vários deuses. Entre eles os do Sol, da Lua e da Terra (Pachamama). Na última fase de ocupação do sítio, o culto voltou-se para Pacha Kamaq, deus dos terremotos.
“Para acalmá-lo, sob o solo já foi descoberto algodão, folhas de coca, cerâmica muito fina, restos de ilhamas e alpacas que também foram oferendas. E esta seria a última atividade evidenciada no local. Acreditamos que essa população se retirou nos anos 1400, escapando dos incas que vinham de Cusco”, afirma a guia.
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Deteorização ao longo do tempo
A última atividade na Huaca Pucllana aconteceu nos anos 1400. Em torno de 1960, com a área já transformada como parte de um bairro urbano, houve ainda por cima no local a prática de motocross e BMX (bicicross).
Quando os arqueólogos começaram as primeiras escavações, em 1981, o terreno era parte de uma companhia privada, encarregada de fazer avenidas, parques, edifícios. Os limites oficiais do sítio só foram estabelecidos em 2001, mas nessa altura, boa parte da estrutura já havia sido destruída.
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Segundo Mariela, a área original era 3 vezes maior: de 18 hectares, sobram apenas 6. Houve desperdícios inclusive nos anos mais recentes: na memória de alguns vizinhos atuais, por exemplo, a Huaca Pucllana era apenas uma colina. “Quando eles eram crianças, depois da escola, eles vinham correndo, subiam, viam o mar, jogavam com suas bicicletas, com alguns amigos”, conta. “Então, é uma surpresa para eles [que seja um sítio arqueológico]. Quando vêm, lembram da colina, mas percebem que não era assim, que é um espaço religioso e que tem 1.600 anos de história”.
Parte do Parque Kennedy e das ruas ao redor também integra o antigo centro cerimonial. Não são raros os relatos de moradores que contam que seus avós, durante a construção das casas, encontraram cerâmicas ou tecidos da época.
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As escavações no local ainda continuam todos os anos, entre os meses de abril até novembro, com uma pausa no verão devido ao forte calor peruano. Há participação permanente de arqueólogos locais, mas também acontecem parcerias com profissionais de várias partes do mundo, incluindo do Egito, durante temporadas de pesquisa específicas.
“Contudo, não há apenas arqueólogos”, lembra Mariela. “De agosto até a quinzena de setembro, mais ou menos, temos uma temporada onde pessoas comuns podem escavar acompanhadas pelos encarregados do museu. Isso ajuda a conhecer também o processo do trabalho e tudo o que os arqueólogos fazem para recuperar a história, sempre ressaltando que não há escrituras [dessas populações pré-incas], então toda a informação que temos se baseia nos elementos encontrados”.
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(Por Vanessa Centamori)