“Sob os flabelos reais de mil palmeiras, tão verdes, sombranceiras e lindas como alhures não as há, sobre alcatifas da mais verde relva, em meio a verde silva, eis a ‘cidade verde’: Cuiabá!”.
Os versos visionários de Dom Aquino, que deu o título ecológico a capital no começo do século XX e mais tarde virou tema de rasqueado, perdeu muito do seu significado original nos dias atuais, pois grande parte das árvores da cidade sumiram e seu verde decantado em verso que já foi realidade foi morar na poesia, invertendo a lógica literária.
Ao passearmos pelas ruas de Cuiabá, com nossa cegueira moral com celulares acesos, não conseguimos perceber os cenários ambientais em que vivemos, como árvores, áreas verdes, floradas e frutos.
Para além do patrimônio histórico da Cuiabá tricentenária existem outros bens chamados naturais presentes nas ruas, quintais e praças públicas, apesar de recortados como retalhos de um tecido ambiental remanescente, sobrevivem ao tempo, ficaram como prova!
As paisagens ambientais, segundo a história do mundo natural, são documentos vivos ou fragmentos frásicos que representam temporalidades distantes e reespacializações.
Os portugueses trouxeram com a colonização um modo de vida, um conceito de paisagem natural e civilidade que envolvia a arborização das casas e praças. Notadamente as frutíferas para o ambiente doméstico como solução de arejamento e nutrição humana nos quintais; e as ornamentais para os espaços públicos das vilas e povoados, garantindo uma boa aclimatação aos trópicos, sombra e ventilação. As árvores nativas foram preservadas nos espaços urbanos de acordo com sua utilidade paisagística, ambiental e alimentar.
A partir de 1808 com a criação do Jardim Botânico a política de arborização do Brasil ganhou abrangência nacional e parte de uma construção política de urbanidade e civilidade. O imperador criou esse espaço para produção de mudas, aclimatação e experimentação de espécies advindas da Ásia, África, Europa e América. Tal qual nossa cultura matizada e pluricultural, as paisagens brasileira são de certa forma a síntese dessa experiência de diversidade, transportada para o ambiente natural das vilas e povoados. Apesar de assimétrica nas relações econômicas e sociais a alma portuguesa era da experimentação e misturas.
Os quintais cuiabanos, antes de virarem estacionamentos serviam para aliviar os bolsões de calor e de fome da população. Possuíam plantas trazidas de todos os lugares do mundo isso desde sua descoberta no séc. XVIII.
Frutas que parecem tão nossas, são de outros países, como as mangueiras (Índia), goiabeiras (América), jaqueira (Índia), atas (nativa), tamarineiros (África), cajueiros (nativo) e os abacateiros (México) e a canela (Índia).
Para as ruas e praças importaram os coloridos Flamboyãs junto com a “rainha da sombra” o chapéu do sol ou 7 copas, ambas vindas de Madagascar na África. Temos vários exemplares de Flamboyã na cidade os mais conhecidos na Av. Beira Rio na Av. Getúlio Vargas na esquina com a rua Batista das Neves antigo prédio do INSS.
Nas praças, a ordem régia era plantar a palmeira nativa das américas chamada “imperial ou real”, virou a coqueluche do recente império brasileiro, sendo arvore símbolo. Todas as capitais das províncias em seus projetos urbanísticos na sede do poder local tinham obrigatoriamente essas palmeiras de muitos significados políticos e culturais. Eram consideradas as filhas do Imperador porque descendiam de uma mãe matriz plantada pelo próprio D. João VI em 1809 por nome plama mater.
Os locais de maior concentração dessas palmeiras em Cuiabá foi a avenida Getúlio Vargas, as praças: Alencastro, República e Ipiranga. Das 3 praças, apenas a Ipiranga manteve um maciço mais significativo dessas espécies. Na Ipiranga, encontramos na esquina da praça a mais famosa das palmeiras, xodó dos cuiabanos, a elegante gogó de ema, tombado pelo patrimônio histórico.
Na colonização de Cuiabá os portugueses foram tão sábios que deixaram vários espaços públicos plantadas árvores no Centro Histórico, ruas, praças e áreas verdes, como o Morro das Cercanias ou da Luz, verdadeiro retalho paisagístico do cerrado antigo, testemunho vivo da antiquíssima cidade do ouro as margens do lendário Córrego da Prainha onde, em 1723, Miguel Sutil descobriu as primeiras jazidas auríferas.
Se tivesse que escolher uma árvore nativa símbolo de Cuiabá, sem ser o Ipê, certamente seria a Chimbúva cuiabana, também chamada de Orelha de Negro ou Tamburi, entre outros motivos porque existem muitos exemplares da espécie na cidade e pelo seu significado cultural. Com sua madeira pode se fabricar gamelas, conchas e outros utensílios domésticos, além de ser a matéria prima para a fabricação do maior ícone da cultura cuiabana, a viola de cocho, e servir para a fabricação das famosas canoas ribeirinhas.
Encontramos essa espécie em muitos lugares da cidade: ao lado do Tribunal do Trabalho na Av. André Maggi, na rua lateral da SEFAZ sentido palácio do governo, ao lado do Bar Money Money no Boa Esperança, no Museu da Caixa D´água e na saída para Santo Antônio do Leverger depois do Cemitério.
Outra árvore bastante recorrente é o Tarumeiro que produz uma fruta preta comestível de cheiro marcante parecido com uma azeitona preta. Encontramos várias espécies dessas na praça 8 de abril (do Chopão), na praça do Bairro Lixeira e na calçada do CEFAPRO, atrás da Escola José de Mesquita, no porto.
Em menor número temos outras variedades como o angico branco existente na Av. Getúlio Vargas na frente do Junta de Conciliação de Cuiabá, as paineiras do Campo do Bode no porto e as sucupira-branca da Avenida do CPA que sobreviveram ao genocídio arborístico que foi o VLT. Nesse artigo não destaquei a importância dos Ipês porque essas árvores já são consagradas no gosto popular.
A manutenção de algumas espécies estão ligadas a utilidade destas plantas para a vida social no espaço urbano, embelezamento, sombreamento, utilidade fototerápica, simbólica e nutritiva.
Depois desse passeio pelos lugares da memória e paisagens da nossa Cuiabá Cidade quase Verde ruas e quintais, vamos olhar com mais atenção e com coração para nossas árvores antigas e espaços verdes da cidade e cuidar desse patrimônio histórico, cultural e também ambiental.
Em tempos de “presenteísmo” conhecer a história torna-se um potente antídoto contra os ódios do presente e a obsessão pelo futuro que tem causado tantas doenças mentais, como a ansiedade e a síndrome do pânico.
Essas árvores e ambientes naturais nos causam um frescor psicológico, misto de bem-estar físico e mental porque fazem parte das memórias coletivas de uma Cuiabá antiga, bucólica de quando podia se sentar nas praças para conversar entre as palmeiras e nos quintais enormes.
Cuiabá, cidade-rio, mulher e indígena, patrimônio natural do Brasil que nos versos de Moisés Martins nós traz uma saudade gostosa, confortante, como um colo de rede de dormir armada nos quintais: É tempo bom que não volta mais, só na lembrança de quem foi menino, hoje é rapaz.”
(*) SUELME FERNANDES é Analista Politico e Mestre em História pela UFMT.