Por décadas, o “mais solitário elefante do mundo” divertiu multidões em seu pequeno pedaço de terra em um zoológico do Paquistão. Os visitantes aplaudiam quando ele os saudava, instigado pelos cuidadores que o cutucavam com ganchos pregados na pele. Mais do que tudo, o objetivo era ganhar dinheiro.
À sua volta, outros animais desapareceram enquanto sua única companheira morreu, supostamente de sepse causada pelos ganchos cravados em sua pele.
Por anos, parecia que ninguém se importava com o destino solitário do elefante. Suas feridas infeccionaram e as correntes em torno de suas pernas deixaram cicatrizes permanentes. Ele ficou obeso e cheio de traumas.
Mas, neste domingo, o elefante mais solitário do mundo, como ficou conhecido, finalmente deixará para trás seu antigo cativeiro para uma nova vida no outro lado do continente, graças à determinação de voluntários e, de maneira surpreendente, de um ícone da música pop, a cantora americana Cher.
Esta é a história de Kaavan, que começa com uma oração e termina com uma canção.
A oração
Kaavan poderia nunca ter ido ao Paquistão se não fosse por um filme de Bollywood, a indústria de cinema da Índia. Mas também houve alguma complicada diplomacia internacional e caprichos de uma menina.
Zain Zia, filha do então governante militar do Paquistão, Gen Ziaul Haq, se apaixonou por elefantes depois de assistir ao filme Haathi Mere Saathi (sucesso indiano dos anos 1970, e que, em tradução livre para o português, se chamaria Elefantes, meus amigos).
Zain Zia, então, fez uma oração.
“Eu olhei para o céu e rezei: ‘Allah Mian, me dê um haathi mera saathi’ (“querido Deus, me dê um elefante para ser meu amigo”)”, disse Zain à BBC, recentemente.
Sua oração foi ouvida por seu pai, conta. Certa manhã, não muito tempo depois, quando Zain se preparava para ir à escola, Gen Haq pediu que ela parasse. Ele colocou uma venda na filha e a levou para o gramado nos fundos da casa.
Companhia perdida
O trabalho de Kaavan era ficar na cerca para entreter a multidão durante o horário de funcionamento do zoológico, erguer seu tronco como uma tigela de esmola quando seu mahout (treinador) o cutucava com um gancho, passando-lhe o dinheiro que a multidão lhe dava.
As noites de Kaavan eram vividas em uma área do tamanho de meio campo de futebol. Também havia uma cabana com piso de concreto.
Um relatório escrito pelo grupo de defesa dos direitos animais Four Paws International (FPI) apontou que o local tinha “um fosso seco com paredes de concreto estreitas; solo compactado; nenhum outro substrato natural solto, nenhuma árvore, troncos, arbustos, pedras, pneus ou qualquer outra estrutura”.
Mas, antes do relatório, pelo menos Kaavan tinha companhia. Durante anos, sua companheira constante foi Saheli, que significa ‘amiga’ em urdu. Saheli havia sido levada para a região a partir de Bangladesh, no início dos anos 1990.
A necessidade de tal companhia não pode ser subestimada. Especialistas em vida selvagem dizem que os elefantes são cognitivamente sofisticados, quase como os humanos. Eles têm quase a mesma expectativa de vida — entre 60 a 70 anos na natureza — e têm emoções semelhantes, como fortes laços familiares.
Eles também choram seus mortos.
Saheli morreu em 2012. A versão oficial dos acontecimentos é que ela teve um ataque cardíaco devido ao clima quente, mas Mohammad bin Naveed, voluntário do FIZ, alega que a causa da morte foi sepse.
“Em algum momento, as garras não esterilizadas do gancho penetraram muito fundo em sua pele. Ela teve gangrena e morreu de choque séptico. Todo mundo sabe disso, mas não quer admitir”, diz ele.
Kaavan — já desprovido do ambiente natural de que precisava — passou a agir de maneira cada vez mais agressiva nos anos que antecederam a morte da companheira. Desde 2000, ele passou longos períodos acorrentado.
Depois que Saheli morreu, Kaavan piorou. Seu cuidador avisou que ele era perigoso e não permitia que ninguém, incluindo ele mesmo, se aproximasse do elefante solitário.
Quando a equipe da FPI chegou em 2016, eles encontraram um animal “agressivo”. Ele tinha “baixa atividade locomotiva, nenhum comportamento exploratório ou de conforto, estágio avançado de comportamento repetitivo (balanço constante da cabeça)” e completa indiferença aos humanos.
Sua condição física também estava se deteriorando, segundo a FPI. Ele tinha “conjuntivite leve no olho esquerdo, algumas áreas menos pigmentadas na parte inferior das pernas, indicando lesões antigas em série, várias unhas rachadas e cutículas crescidas”.
Kaavan estava doente, isso estava claro. Ele também estava preocupantemente acima do peso, resultado da dieta rica em açúcar.
Mas ninguém queria perder a atração principal do zoológico. O que Kaavan precisava, descobriu-se, era uma estrela ainda maior para vir em seu auxílio.
A música
Cher soube da situação de Kaavan em 2016. A atriz e cantora vencedora do Oscar, que fundou a Free the Wild, uma instituição de proteção à vida selvagem, contratou uma equipe jurídica para pressionar pela liberdade do elefante.
Quando a ordem judicial que o libertou foi anunciada em maio, a cantora considerou aquele um dos “melhores momentos” de sua vida. Nos meses seguintes, ela registrou o progresso de Kaavan em sua conta no Twitter, que tem 3,8 milhões de seguidores.
Mas a luta por Kaavan e os outros animais no zoológico não acabou. O problema foi jogado de um departamento para outro, antes de finalmente terminar no Supremo Tribunal de Islamabad.
Em junho, chegou a ordem de fechar o zoológico para sempre. Mas o destino de Kaavan permaneceu incerto.
Houve aqueles, diz Mohammad bin Naveed, que tomaram o “caminho egoísta”, dizendo que se recusariam a deixar Kaavan ir para o exterior, “que cuidariam dele”.
Mas, como Uzma Khan, do World Wildlife Fund, apontou em uma recente entrevista para a televisão, o zoológico de Kazaan não era o único com problemas. O Paquistão não tem padrões uniformes quando se trata de criação de animais. Nenhum de seus zoológicos é membro da Associação Mundial de Zoológicos e Aquários (WAZA), por exemplo.
Assim, a Four Paws International foi convidada para o país uma segunda vez e um novo plano foi traçado — levar Kaavan pela Ásia até o Camboja, onde ele poderia viver o resto de seus anos em um santuário protegido.
Só havia um problema: Kaavan era um elefante agressivo de 30 e poucos anos, com problema de peso. Nem a raiva nem o peso contribuíram para uma viagem fácil de avião ao Camboja.
Sem final, Amir Khalil, o egípcio chefe da equipe FPI, encontrou uma solução.
“Comecei a cantar. E depois de algum tempo, percebi que o elefante começou a se interessar pela minha voz. Fiquei com vergonha, mas também feliz por ter encontrado um grande fã. Comecei a cantar para ele, e ele ficou mais calmo.”
Logo Kaavan podia ser visto comendo nas mãos de Khalil. Ele também tomava banho no lago enquanto seu novo amigo cantava uma de suas canções favoritas, junto a um sistema de som portátil.
Não muito depois, esse elefante outrora agressivo ficou aindamais calmo. Khalil e seus colegas conseguiram levar Kaavan até uma caixa projetada para carregar um peso de cinco toneladas e meia em um voo de oito horas até o Camboja.
E, nesse domingo, Kaavan vai voar de avião após 35 anos sofrendo nas mãos do que Khalil descreve como uma combinação de “má gestão, falta de pessoal experiente, humanidade misturada com negócios e dinheiro, e menos atenção ao bem-estar dos animais.”
Cher sugeriu no Twitter que ela poderia viajar ao Camboja. Na sexta-feira, ela desembarcou no Paquistão. Sua programação exata foi mantida em segredo por razões de segurança, mas ela teria se encontrado com o primeiro-ministro, Imran Khan, na sexta-feira.
Ela deve viajar do Paquistão para a nova casa de Kaavan no Camboja, o Santuário de Vida Selvagem Kulen-Promtep, onde voluntários e funcionários trabalham para proteger o habitat natural e abrigar uma grande variedade de espécies ameaçadas de extinção.
Kaavan ainda pode ter dificuldades para superar seus problemas psicológicos e se ajustar a um ambiente natural, diz Khalil, mas ele “finalmente tem a chance de ser um elefante e de viver em um lugar que pode chamar de lar”. (Terra/BBC News)