O texto do Novo Código Civil, em discussão no Senado, deve propor um conjunto de regras para regular os bens digitais a morte. O projeto deve incluir itens como acesso a senhas, dados financeiros, perfis em redes sociais e programas de milhas de companhias aéreas como parte da herança. Após meses de debates, o grupo formado por juristas para discutir a atualização do Novo Código Civil apresentou o texto do anteprojeto de lei na última quarta-feira (17). A proposta vai ser convertida em um projeto de lei a ser debatido no Senado e na Câmara dos Deputados.
Essa lei regula os direitos e deveres das pessoas no âmbito civil, ou seja, as relações jurídicas que envolvem os indivíduos em sociedade. Ele aborda questões como contratos, propriedade, família, sucessões, obrigações e responsabilidade civil, entre outros aspectos do direito privado. O Código Civil brasileiro foi instituído em 1916 e passou por diversas reformas ao longo do tempo para se adaptar às mudanças sociais e jurídicas. A última foi realizada em 2002.
Atualmente, não existe uma norma específica nessa lei, na LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) ou no Marco Civil da Internet que regule a herança de bens digitais. Há divergências entre juristas sobre o assunto. Enquanto alguns pensam de forma restrita, acreditando que apenas os bens relacionados a relações financeiras podem ser transmitidos, outros argumentam que tanto os bens financeiros quanto os pessoais poderiam ser transferidos, desde que possam ser avaliados economicamente.
Como ficam as milhas aéreas e o acesso a mensagens privadas
De acordo com o advogado especializado em direito civil Sandro Schulze, o testamento digital é usado para que o detentor de um patrimônio possa estabelecer como deseja que seus bens digitais sejam tratados após o falecimento.
No caso de milhas aéreas, os principais programas de fidelidade não incluem disposições para a transmissão dos pontos após a morte. “Diversos programas de milhagens estabelecem a extinção da conta após o falecimento do titular, não sendo possível a transmissão das milhas. O Superior Tribunal de Justiça decidiu, em outubro de 2022, que os pontos obtidos de forma gratuita, como recompensa pela fidelidade do cliente ao comprar produtos ou serviços, podem ser excluídos pela companhia aérea.”
A decisão considerou que os clientes não são obrigados a se cadastrar nos programas e que estavam cientes das regras ao se inscreverem, portanto não é considerada abusiva a cláusula que impede a transferência dos pontos após a morte do titular. Essa situação mudaria com a aprovação do texto, pois as milhas seriam consideradas parte da herança digital e transferidas para um terceiro.
Segundo o advogado, é amplamente aceito em decisões judiciais que, no caso de dados e informações pessoais não relacionados a questões financeiras, a privacidade do falecido deve ser respeitada. “Nesse caso, as informações personalíssimas só devem ser acessadas pelos herdeiros em casos excepcionais, nos quais há uma razão específica que seja mais importante do que manter a privacidade e a intimidade da pessoa que faleceu.”
A advogada Carolina Mori afirma que as plataformas que armazenam informações digitais geralmente têm suas próprias políticas em relação aos bens dos usuários. Algumas redes sociais oferecem formulários específicos para que os usuários expressem suas preferências sobre o destino de suas contas e conteúdos digitais após a morte. Também é aceito que a privacidade do falecido deve ser respeitada no caso de dados e informações pessoais não relacionados a questões financeiras, .
Isso permite que os usuários escolham alguém para administrar suas contas ou determinem seu destino após a morte. No Facebook, as contas de usuários mortos podem ser transformadas em memoriais. O Instagram segue uma política semelhante, exigindo prova de falecimento para converter a conta em memorial. Familiares próximos têm a opção de solicitar a remoção da conta no Instagram. O Google oferece opções para lidar com contas após a morte por meio de formulários específicos. O X (antigo Twitter) pode desativar a conta com autorização do Estado ou de um parente verificado do falecido.
Lacuna no anteprojeto de lei
Carolina Mori chama a atenção para uma lacuna no anteprojeto de lei, sobre exposição da privacidade de terceiros que interagiram com o falecido nas redes sociais. Em outras palavras, podem ser incluídos na herança digital mensagens trocadas por aplicativos de mensagem, conversas privadas em redes sociais e outras formas de interação privada.
“Em geral, o Judiciário tem se mostrado relutante em atender pedidos de acesso a esse tipo de conteúdo [mensagens privadas] após a morte da pessoa, priorizando a privacidade e os direitos individuais, pois a decisão de permitir ou negar o acesso a dados pessoais que representam a esfera íntima da pessoa falecida caberia apenas ao titular desses”, afirma.
“Vejo com certa preocupação a possibilidade de que terceiros que interagiram com o falecido em vida também tenham suas privacidades expostas aos herdeiros, e este é um ponto que o anteprojeto não abordou, transformando o direito de personalidade em bem patrimonial, como, por exemplo, no caso da permissão do uso de imagens de pessoas vivas ou falecidas por meio de inteligência artificial, desde que com o consentimento expresso dos herdeiros, para fins comerciais.”
A advogada Isabela Pompilio, especializada em tecnologia, concorda que a exposição de terceiros e o acesso às mensagens privadas são preocupações importantes no anteprojeto de lei. Isso apesar de o texto indicar que seus herdeiros não podem acessar suas mensagens privadas se não houver uma instrução expressa do falecido, a menos que demonstrem um “interesse próprio, pessoal ou econômico” em vê-las.
“Por serem conceitos amplos, provavelmente o alcance do que sejam ‘interesses próprios e pessoais’, a ensejar o acesso, por terceiros, aos arquivos de conversa privada, deverão ser objeto de interpretação pelo Judiciário, a fim de que haja efetiva observância e respeito a intimidade do falecido. O ideal seria que, além da demonstração de interesse, este fosse justificado e não houvesse outra forma de obtenção. Não é razoável que um mero interesse seja suficiente a violar a intimidade do usuário falecido”, afirma.
O conteúdo do novo Código Civil passou por discussões em uma comissão especial composta por juristas, formada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em agosto de 2023. O anteprojeto será convertido em um projeto de lei, a ser debatido no Senado e na Câmara dos Deputados.
(R7)