Pesquisadores diante de computador com imagem da aranha Acanthoscurria rondoniae — Foto: Comunicação Butantan

Pesquisadores do Instituto Butantan descobriram uma molécula no sangue da aranha Acanthoscurria rondoniae, uma espécie de tarântula da região amazônica, que pode se tornar uma aliada no tratamento de fungos resistentes. Batizada de rondonina, a molécula foi capaz de eliminar fungos do gênero Candida e Trichosporon em testes in vitro e in vivo. Além disso, seu mecanismo de ação mostrou-se específico para os patógenos, indicando baixo risco de toxicidade, de acordo com estudo publicado na revista In Silico Pharmacology.

A cada ano, os fungos infectam 6,5 milhões de pessoas no mundo, sendo diretamente responsáveis por 2,5 milhões de mortes. A preocupação aumenta diante do desenvolvimento de fungos resistentes aos fármacos convencionais. Em relatório divulgado em 2022, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reforça que o problema da resistência antimicrobiana vai além das bactérias, e que é preciso fortalecer a resposta global às infecções fúngicas e à resistência antifúngica.

A rondonina vem sendo estudada desde 2012 pelo grupo do pesquisador Pedro Ismael da Silva Junior, do Laboratório de Toxinologia Aplicada do Butantan.

Molécula no sangue da aranha Acanthoscurria rondoniae, uma espécie de tarântula da região amazônica, pode se tornar uma aliada no tratamento de fungos resistentes. — Foto: Comunicação Butantan
Molécula no sangue da aranha Acanthoscurria rondoniae, uma espécie de tarântula da região amazônica, pode se tornar uma aliada no tratamento de fungos resistentes. — Foto: Comunicação Butantan

Caracterizada pela bióloga Katie Cristina Takeuti Riciluca, atualmente pós-doutoranda do laboratório, a molécula é um fragmento da hemocianina, uma proteína do “sangue” (hemolinfa) da aranha responsável pelo transporte de oxigênio. Em trabalhos anteriores, os cientistas descobriram que esse fragmento possuía propriedades antimicrobianas, atuando no sistema de defesa do animal.

O peptídeo foi sintetizado em laboratório e testado contra diversos tipos de microrganismos. Nesses desafios, a eficácia foi maior contra fungos unicelulares (as chamadas leveduras) – como os do gênero Candida, que podem causar doenças graves em pessoas com sistema imune enfraquecido. O Candida auris, por exemplo, considerado multirresistente, possui uma taxa de mortalidade de até 66% em pacientes internados em Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

Uma vez descoberto o potencial da rondonina, os cientistas do Butantan se dedicaram a entender por quais vias a molécula era capaz de matar os fungos, ou seja, quais seriam os alvos moleculares envolvidos nessa resposta. Para isso, os pesquisadores conduziram uma simulação computacional, trabalho que fez parte do doutorado do biomédico Elias Jorge Muniz Seif, aluno de Pedro Ismael.

“Nós construímos computacionalmente a estrutura tridimensional da rondonina e testamos seu encaixe com centenas de proteínas de interesse, que são importantes para a sobrevivência do fungo. Depois, vimos quais ligações permaneciam estáveis ao longo do tempo, para identificar as proteínas de melhor encaixe – que seriam os alvos mais prováveis da nossa molécula”, explica Elias.

Os cientistas identificaram dois alvos principais: a proteína de membrana externa F (canal por onde a rondonina entra no fungo) e a proteína que envolve o DNA do patógeno. A hipótese é que a molécula age dentro da célula do fungo, diretamente no material genético, e impede que ele se replique. Isso significa que ela tem uma atividade específica para o microrganismo, sugerindo que ela pode ser segura para células humanas.

O próximo passo do estudo é validar os alvos por meio de experimentos de bancada, a fim de aprimorar o conhecimento sobre o funcionamento da rondonina. “A biologia computacional, de forma geral, ajuda a reduzir custos, acelerar os estudos e minimizar o uso de animais em pesquisa. É possível testar centenas ou milhares de alvos para filtrar aqueles com maior potencial, que devem seguir posteriormente para os testes in vitro e in vivo”, aponta Elias.

Molécula também apresentou atividade contra câncer

Paralelamente, os pesquisadores investigam se fragmentos da rondonina – que é composta por uma sequência de 10 aminoácidos – podem ser igualmente ou até mais eficazes do que a molécula inteira. O objetivo é conseguir obter uma molécula menor que seja uma boa candidata terapêutica, o que ajudaria a reduzir custos no futuro desenvolvimento de um fármaco, além de garantir maior segurança.

Modificações na molécula também podem resultar em efeitos terapêuticos diferentes. Em outro estudo recente, o grupo descobriu que, com a remoção de apenas um aminoácido da rondonina, foi possível obter um novo peptídeo com atividade antitumoral. Batizada de RondH, a nova molécula foi capaz de reduzir o desenvolvimento de metástase em modelos animais de melanoma (câncer de pele).

Peptídeo descoberto pelo Butantan mostrou ação antifúngica e baixo risco de toxicidade — Foto: Comunicação Butantan
Peptídeo descoberto pelo Butantan mostrou ação antifúngica e baixo risco de toxicidade — Foto: Comunicação Butantan

“A atividade antimicrobiana é a ponta do iceberg. Se você identifica uma boa molécula, que tem ação antimicrobiana e que não é tóxica para células humanas, é muito provável que ela também tenha outras atividades importantes”, diz Pedro Ismael, que se dedica a essa linha de pesquisa há mais de 30 anos.

Por que os microrganismos desenvolvem resistência?

Antibióticos, antivirais, antifúngicos e antiparasitários servem para tratar doenças infecciosas em humanos, animais e plantas. A resistência antimicrobiana, que ocorre quando os microrganismos deixam de responder a esses tratamentos, é responsável por cerca de 2 milhões de mortes por ano no mundo. A OMS estima que, até 2050, esse número poderá chegar a 8,2 milhões, resultando em US$ 1 trilhão adicionais em custos de saúde.

O desenvolvimento de resistência é um processo natural da evolução das espécies, mas que tem sido intensificado pela ação humana. Uma de suas principais causas atualmente é o uso inadequado ou excessivo de antimicrobianos (o que inclui remédios antibióticos), não só na saúde humana, mas também na agropecuária. Na prática, quanto mais os microrganismos são expostos aos antimicrobianos, seja pelo uso exacerbado ou descarte incorreto no meio ambiente, mais gerações resistentes vão surgindo.

Segundo a OMS, a resistência antimicrobiana “é um problema complexo que requer ações específicas nos setores de saúde humana, produção de alimentos, animais e meio ambiente, e uma abordagem coordenada entre essas áreas.”

(Por Aline Tavares/Portal do Butantan)