Filho de retirantes – gostava de repetir. Isso dizia tanto como manifestação terna e de respeitosa reverencia aos pais sofridos, mas, ao mesmo tempo servia para sublinhar, discretamente, as conquistas que então havia realizado. Os pais, vindos dos sertões da Bahia, empurrados pela desdita da extrema pobreza, como tantos que se deslocaram do Nordeste calcinado pela seca buscaram as terras do distante Mato Grosso, em busca de um futuro melhor. Levas nômades, seguindo as notícias que partiam do extremo Oeste, se deslocaram por milhares de quilômetros para a região banhada pelo dadivoso Garças. Vinham em busca de um novo El Dorado. A atração era o circunvoleio da bateia, o apego ao picuá, o brilho do xibiu. Então, foram povoando Poxoréo, Barra do Garças, Alto Coité, Guiratinga, Baliza, Torixoréu e tantas e quantas as ribeirinhas currutelas onde poderia reluzir a sonhada magia do diamante. Quando já existia uma população que representava competição para os descobertos que se esgotavam, as vilas murchavam. O povo nômade se deslocava e não tardava a que a terra promissora apontasse outros monchões. Então, para lá muitos se dirigiam, fazendo nova morada.
Pela metade dos anos de 1930, na região de Diamantino, nas nascentes do rio Paraguai, é descoberto o ‘Garimpo do Gatinho’. Como todos aqueles que desde fins do século XIX, partindo das terras baianas, maranhenses, piauienses, cearenses, fizeram caravanas rumo ao Garças e ao Araguaia, a leva de retirantes, na marcha sem trégua dos sonhadores, se moveu para o novo garimpo. E assim nasce Alto Paraguai e Nortelândia ou, se preferirem, Santana dos Garimpeiros. E aí nasceu o filho de retirantes Renato Gomes Nery. Saudoso, escreveu em artigo do ano passado: “O lugar onde nasci e cresci estão encantados em mim, assim como tudo que vivi”.
Foi o primeiro da família a alcançar o curso superior. Advogado, tornar-se-ia profissional bem-sucedido nas lides forenses e na política da categoria. Presidente da OAB, Conselheiro Federal e, em 2006, com pouquíssimas chances, candidatou-se ao Quinto Constitucional para o STJ. Deixou a Presidência da OAB e o Conselho Federal, mas continuou atento à movimentação da entidade e às reivindicações dos colegas. Era participativo. Foi por essa época, em torno das reivindicações da categoria profissional e da ampliação pelo Estado de Direito na sociedade brasileira, que nos aproximamos. Seu escritório passou a ser, em algumas ocasiões, uma espécie de lócus onde se reuniam aqueles que desejavam dar novos rumos à entidade representativa dos advogados. Não tardaríamos a comprovar que tanto tempo dedicado a não poucas discussões em torno dessas ideias haviam sido desperdiçados. A constatação dessa inutilidade e desperdício passou a permear nossas conversas e alimentava o desencanto.
Era um lutador. Tombou. Atacado covardemente, tombou. Sem direito de defesa. Julgado sumariamente. Caiu sem poder lutar. Os fatos são públicos. Quero, porém, falar sobre o cidadão com quem, distante da militância jurídica profissional, desfrutei da amizade.
Umas tantas vezes apontei-lhe que estava se deixando levar por uma cadência crescente de pessimismo, quase uma desesperança com a existência, mais de que com a vida e seus constantes desafios. Esse clima interior foi se aprofundando. Sentimentos que ele expunha numa autoconfissão pública, sem véus, de forma direta. O fato é que Renato se enveredaria, como se pode ler em vários de seus artigos, por um caminho incisivamente confessional, digo, de fortes traços autobiográficos, sublinhados pelo pessimismo. Aliás, esta uma característica que raramente é encontrada em nossos articulistas, os do presente e os do passado.
Em artigo de maio do ano passado, por exemplo, ele concorda: “alguns leitores têm reclamado dos meus últimos artigos, sob a alegação que eles estão muito deprês”. Na sequência, contudo, numa quase tentativa de auto contestação, escreve: “Vou me remir da escuridão e vamos à luz! Eu sou do signo de aquário que transita entre dois polos da existência, com a mesma desenvoltura”. Contudo, no meu entender, disse-lhe, percebia-se que a luz pela qual ansiava não lhe surgia como a clareza solar do meio-dia cuiabano, mas se tornava brumosa e um tanto fugidia, quiçá refratária.
Vejam: como que se sentisse ilhado, como que estivesse preso em uma situação de completo acabrunhamento, de profunda amargura, em abril de 2023 escreveu: “Esta solidão etérea, transparente, inconfundível e inafastável me persegue insistentemente”. Algum tempo antes, havia proclamado, em completo desencanto: “Como não sou religioso as minhas esperanças por outra vida em outro plano são escassas ou inexistem.”
Sugeri-lhe, para que melhor situasse esse estado espírito e de expressão literária, a leitura, entre outros, de Cioran que, com seu pessimismo existencial, de forte e marcante influência de Nietzsche e de Schopenhauer, descortina, não obstante, uma luz de fina e cortante ironia. A fresta de luz que costuma amenizar a dor e o quase desespero. Prometeu fazê-lo. Não sei se fez a leitura do filosofo e sobre ela refletiu. Inequivocamente em alguns dos textos futuros, a amargura se sobressai.
Muito pouco nos falamos nos últimos tempos. Seus artigos já não me vinham como antes, no entanto, me enviou aquele que foi o seu derradeiro artigo e que seria publicado na primeira semana deste mês. Nele, o título “Um tempo sem grandeza”, expressava uma constatação a qual anos atrás havíamos chegado em algumas de nossas conversas. Escreveu: “O pessimista que existe em mim diz que estamos em marcha batida para o caos. […]. Vamos aguardar – sem muita fé – que um Tempo Rei virá nos arrebatar do abismo que se abre à nossa frente!” Foi, com efeito, um canto final de decepção na expectativa de um tardio e, aparentemente longínquo, “Tempo Rei”. Na undécima hora de sua vida, o advogado e articulista voltava a reafirmar o seu acentuado pessimismo, a sua decepção, a sua amargura, enfim o desencanto com a vida pública. Mas, apenas com ela …?
Porém, a meu ver, de todas as suas publicações a que mais acentua um estado de espírito temerosamente angustiado foi o artigo de 19 de junho de 2020. Com o título “Do pó ao pó”, ele nos dá um depoimento em tom de sofrido desabafo onde exponencia um profundo ceticismo. Trata-se de um texto pungente, dolorido, de sofrimento: “… já contemplo o fim e tenho procurado acertar as minhas contas com as pessoas e, sobretudo comigo mesmo. Irei certamente, sem mágoas e ressentimentos. Quero ir em paz e sem homenagens póstumas que não servem para nada. Voltarei tranquilamente ao pó, pois dei a ordem para os meus familiares que os meus restos sejam queimados e jogadas as cinzas fora. E meu último desejo: me esqueçam. Sigam em frente!”
Relendo-o hoje, mais de quatro anos depois da hora fatídica, não posso deixar de dizer que se trata de um texto com fortíssimos traços de ser premonitório. Numa antevisão de desespero e de dor, no qual parecia ter detectado presságios algures, que não sabemos bem de onde vem, Renato Nery teria escrito um texto premonitório, como se fora um testamento? De todo modo, não me furto a dizer que nele Nery se encontrava com o nosso formidável Cioran para quem “Todo princípio de uma ideia coincide com um sofrimento, de preferência secreto”.
Sim, há um sulco de sangue escorrendo pela avenida. Há uma linha de sangue na mão do sicário que apertou o gatilho como existirá uma mácula sangrenta a enodoar a face cruel do mandante, no singular ou no plural. Sim, existirá a permanência de uma mancha vermelho-negra marcando nossa história recente se a ação rigorosa das organizações públicas e das instituições não agirem para estancar a hediondez dos facínoras e a avidez diabólica dos mandantes. Será vitoriosa a hediondez se as leis não se tornarem mais atuantes na contenção do crime. Sim, haverá uma permanente marca de sangue na consciência da sociedade se crimes como estes ficarem impunes.
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- Carlos Gomes de Carvalho é advogado, historiador, professor. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (RJ), da Academia Paulista de Letras Jurídicas, entre outras instituições.