O sonho de uma vida jogado fora. Este é o sentimento com o qual convive diariamente Kauê Moreira de Souza, ex-jogador Corinthians que pendurou as chuteiras aos 24 anos sem sequer ter tido a oportunidade de desfrutar da carreira como profissional do futebol.
Kauê alega ter sido vítima, de abril de 2021 a abril de 2024, de negligência médica por parte do Corinthians pelo tratamento inadequado para tratar lesões no joelho direito como o espessamento fibrocicatricial do ligamento colateral medial e tendinopatia patelar.
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Kauê, ex-jogador da base do Corinthians — Foto: Yago Rudá
Como consequência, Kauê atualmente diz ter dificuldades em realizar tarefas básicas do cotidiano, como subir e descer escadas, andar de bicicleta, dirigir um carro e praticar exercícios físicos. Hoje, o ex-jogador lamenta a chance perdida e busca um recomeço na vida.
— O Corinthians tirou o meu sonho, a minha esperança. Eu acho que tirou até um pouco do meu brilho. O meu maior sonho virou a maior frustração da minha vida. Não foi só o futebol, tirou a minha vida — lamentou em entrevista ao ge.
Apenas em março de 2022, 11 meses depois da lesão, o meia foi operado por Joaquim Grava, à época consultor médico do Corinthians. Segundo Kauê, a cirurgia não resolveu as dores no joelho direito.
— O doutor olhou meu caso e disse que era urgente. Se era urgente, poderia ter resolvido antes. Meu tendão poderia romper e tinha uma fissura no osso da patela. Eu opero e continuo com dor, a mesma coisa. Parece que até um pouco pior. Eu falo: “Meu Deus do céu, o que está acontecendo?”. Era uma coisa para resolver e piorou — afirmou Kauê.
Em julho de 2023, passados 27 meses depois da lesão, o jogador foi submetido à segunda operação com Joaquim Grava. Pouco antes da cirurgia, o meio-campista havia sido promovido para dar sequência ao tratamento com o departamento médico do time profissional.
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Kauê durante tratamento no CT Joaquim Grava — Foto: Arquivo pessoal
Durante todo o período, o contrato de trabalho com o Corinthians precisou ser renovado em mais de uma oportunidade, já que, pela legislação vigente, os clubes não podem mandar embora jogadores que se machucaram durante atividade de trabalho.
Pressão psicológica
Segundo o relato de Kauê ao ge, o período no CT foi a repetição do que já acontecia nas categorias de base. Os tratamentos não funcionavam, o joelho não se fortalecia e, para agravar a situação, o jogador passou a lidar com algo que hoje classifica como pressão psicológica do Corinthians.
— Um doutor do Corinthians me passou um remédio dizendo que a dor era coisa da minha cabeça. E eu sabia que não era. Eles (departamento médico) queriam me fazer acreditar que era da minha cabeça. Eu tomei um remédio, não sei para que que servia, mas falaram que era para a ansiedade e mais alguma coisa — contou.
A medicação citada por Kauê é velija 30mg (cloridrato de duloxetina). De acordo com as informações do fabricante, a medicação é indicada para tratamento de transtorno depressivo; dor neuropática; estados de dor crônica associados à dor devido à osteoartrite do joelho (doença articular degenerativa) em pacientes com idade superior a 40 anos; e transtorno de ansiedade generalizada.
A receita foi assinada pelo médico Leonardo Hirao, no dia 22 de novembro de 2023. O profissional, que não faz mais parte do departamento médico do Corinthians, foi procurado pelo ge e afirmou que a medicação não foi indicada para o tratamento de ansiedade ou depressão, e sim para dor crônica no joelho.
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Kauê durante trabalho no campo com curativo no joelho operado — Foto: Divulgação/ Agência Corinthians
— A duloxetina ou velija é utilizado para tratamento de dor crônica. O medicamento em si não cura a lesão. Mas teria o papel de reprogramar um padrão prolongado de dor, a partir de três meses isso pode ocorrer. Não posso responder em relação ao departamento médico do clube, uma vez que não tenho mais vínculo. Mas foram esgotados todos os recursos disponíveis que tínhamos na época. O uso do medicamento foi mais uma tentativa de reabilitar o atleta para que ele pudesse retornar aos gramados — afirmou o médico.
O fim da carreira
Em abril do ano passado, passados três anos da lesão e sem ter jogado uma partida sequer, Kauê foi dispensado do Corinthians.
Nos últimos meses, o meia tentou a sorte no Itaberaí e, mais tarde, no Inhumas, ambos de Goiás. Em 2025, depois de apenas 20 minutos em campo, a ex-promessa do Timão decretou o fim da carreira pela falta de força no joelho direito.
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Kauê abraça elenco do extinto time sub-23 do Corinthians — Foto: Divulgação/ Agência Corinthians
— Entrei dentro do ônibus e comecei a mandar mensagem para minha família. Não estava bem, me faltava o ar. Eu comecei a chorar, chorar muito mesmo. Não entendi o que estava acontecendo, todos falavam que eu estava com crise de ansiedade — relatou Kauê, sobre o último ato da carreira como jogador.
A lesão
Nascido e criado em Diadema, Kauê passou pelas categorias de base de Santos, São Paulo e São Bernardo antes de chegar ao Corinthians em abril de 2019. Na época com 18 anos, o garoto assinou contrato para integrar a categoria sub-23, criada na gestão do ex-presidente Andrés Sanchez, com o salário de R$ 3 mil.
Meses depois, amparado pelas boas atuações com a categoria, renovou o vínculo e teve o salário corrigido para R$ 12 mil. No primeiro semestre de 2021, durante uma sessão de treinamento, se lesionou e começou o martírio que decretaria o fim de sua carreira e a desilusão com o futebol.
— Tomei um encontrão no treino, coisa normal. Estiquei demais o meu joelho e tive uma torção. Senti muita dor, muita dor mesmo. Fui para o departamento médico, eles avaliaram meu joelho no achismo, pega aqui, pega ali, dizem que não é nada. Só que eu não consigo me mexer. Eles (departamento médico) dizem que vou ter que ficar um período na fisioterapia — recordou.
Cirurgias e renovações
Em maio de 2021, Kauê foi submetido a duas ressonâncias magnéticas que constataram duas lesões no joelho direito: tendinopatia patelar e espessamento fibrocicatricial do ligamento colateral medial. O departamento médico do Timão optou por um tratamento conservador sem a necessidade de intervenção cirúrgica.
Segundo Kauê, de maio a fevereiro do ano seguinte, ele ficou sob os cuidados dos fisioterapeutas da base sem apresentar melhora. No período, ainda machucado, Kauê chegou a ser emprestado ao Marcílio Dias sem ter um minuto sequer em campo no Campeonato Catarinense.
— Já tive aquilo quando estava no Corinthians, mas eu não entendia o que era porque não falava para ninguém o que acontecia comigo. Eu sofria sozinho. Hoje, faço terapia. A terapia foi uma coisa boa porque consegui me soltar mais. Qualquer pessoa com cabeça um pouco mais fraca teria feito merda. É complicado. As pessoas podem falar que estou me vitimizando, mas só quem passou sabe.
O presente e o futuro
Atualmente, Kauê vive com a namorada Giovanna em Diadema e aguarda o início do pagamento da pensão devida pelo Corinthians para custear os R$ 30 mil da cirurgia no joelho direito.
O procedimento é vital para que o agora ex-jogador consiga recuperar qualidade de vida e se livrar das restrições de movimento.
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Kauê e seu pai, Luis Carlos, assistem jogo do Corinthians na Neo Química Arena — Foto: Arquivo pessoal
— Imagina você bater seu joelho na quina de um rack ou na cama e conviver com essa dor. É uma dor de pancada, só que ela é constante. Toda vez que eu coloco meu pé no chão, ela cutuca. E eu tive que aprender a conviver com essa dor.
Além da cirurgia, Kauê tem planos de iniciar a formação universitária no ano que vem e, aos poucos, se encaixar em alguma função no mercado de trabalho.
— O Kauê era sonhador. Hoje, sou mais um que entrou para a estatística do futebol, mas não por ter feito algo de errado. Fico muito triste, tiraram isso (sonho de ser jogador) de mim. É algo irreversível, não estava nos meus planos. Hoje, procuro outra coisa para fazer, estou em busca de novas oportunidades. A primeira coisa que eu tenho que fazer é me encontrar na vida.
E o futuro do ex-jogador passa por uma readaptação, como ele mesmo classifca, de entender o que as limitações causaram na sua rotina e as soluções que possam ser encontradas para ao menos ter qualidade de vida.
— Estou tentando me encontrar na vida, saber quem eu sou. Preciso saber quem é o Kauê hoje e esquecer do Kauê jogador de futebol. Fazer uma faculdade, estudar, procurar outro caminho, trabalhar. Mas como vou trabalhar se não consigo pegar peso, não consigo ficar agachando? Não posso ficar sentado muito tempo. Atrapalhou muito minha vida. É difícil demais se readaptar.
— Vamos num parque dar uma volta de bicicleta. Eu consigo andar dez minutos, encosto a bike e fico olhando os outros andar. Preciso me achar em uma coisa que alguém fez, não fui eu que me perdi.
Atualmente, Kauê deseja apenas fazer coisas simples, como dirigir. O maior sonho, no entanto, é que os pais não ouçam que a sua vida “acabou”.
— Dirigir não é mais uma coisa normal que faço. Uma coisa normal para um ser humano, subir escada, ir para uma academia… Não consigo ganhar força na perna por causa da dor. Atrapalhou muito a minha vida pessoal.
O que diz o médico Joaquim Grava?
Procurado pelo ge, Joaquim Grava, responsável pelas duas operações no joelho direito, alegou que os procedimentos foram um sucesso do ponto de vista médico, mas reconheceu que os tratamentos pós-cirúrgicos não funcionaram e, por isso, há a necessidade uma terceira intervenção cirúrgica para que Kauê tenha qualidade de vida.
— O Kauê tinha uma doença crônica, uma tendinite patelar. É algo muito difícil de tratar. Fizeram (no CT da base) o tratamento clínico, mas ele alegava dor. Resolvemos fazer uma ressecção, onde tinha necrose no tendão. O Kauê foi melhorando aos poucos, mas logo piorou. Então, ele fez uma segunda cirurgia para tirar outro pedacinho do tendão.
— Depois, ele seguiu se queixando que sentia dores nos exercícios de fisioterapia. Eu mesmo dei a ordem para o Bruno Mazziotti (à época coordenador de saúde e performance do Corinthians) para que o Kauê fosse tratar no CT do profissional. Ele ficou lá por muito tempo.
Grava entende que o Corinthians cometeu um erro ao dispensar o jogador.
— Eu saí do Corinthians em dezembro de 2023, e o Kauê foi mandado embora em 2024. Mandaram o atleta embora com dor e sem estar recuperado. Ele tinha que fazer uma terceira cirurgia, um reforço de tendão, algo grande. O Corinthians não poderia tê-lo mandado embora naquelas condições. Se eu estivesse lá, não o deixaria ser dispensado — afirmou o médico.
O que diz o Corinthians?
Procurado pela reportagem, o Corinthians informou que acatará a decisão da Justiça do Trabalho e arcará com o pagamento da pensão. (GE)


