Na decisão em que confirmou a denúncia contra oito réus pelo incêndio no Ninho do Urubu, o juiz Marcos Augusto Ramos Peixoto aponta para o que ele chama de “omissão” do ex-presidente Eduardo Bandeira de Mello e, embora se declarando “anti punitivista”, lamenta que os atuais dirigentes do clube não tenham sido denunciados. O magistrado também criticou os acordos firmados com as famílias e funcionários pós incêndio: “acordos em valores pífios”.

Entretanto, mesmo lamentando a ausência dos atuais cartolas, o juiz afirma que não há nos autos provas de que a gestão anterior tenha informado aos novos gestores as condições irregulares apontadas pelo MP.

Dez atletas mortos em incêndio no Ninho do Urubu — Foto: Infoesporte

Dez atletas mortos em incêndio no Ninho do Urubu — Foto: Infoesporte

Bandeira de Mello teve a denúncia confirmada e é um dos oito réus por incêndio culposo (sem intenção) qualificado e lesão corporal grave. A decisão foi publicada nos autos do processo que corre na 36ª Vara Criminal do Rio de Janeiro e buscar responsabilizações pelos dez adolescentes que faleceram no incêndio.

Na mesma decisão, o monitor Marcus Vinícius Medeiros foi absolvido sumariamente, enquanto o então diretor de futebol e hoje gerente de transição da base, Carlos Noval, e o engenheiro Luiz Pondé tiveram as denúncias rejeitadas.

Na visão do magistrado, Bandeira de Mello falhou em não cumprir determinação do Ministério Público de manter pelo menos dois monitores para supervisionar os adolescentes no período noturno.

“é incontroverso que o mesmo não mais era presidente do Clube à época dos fatos, tendo saído da função em 02 janeiro de 2019, portanto pouco mais de um mês antes do incêndio. Contudo, tal lapso temporal, absolutamente próximo à trágica e fatal ocorrência, não parece, a princípio, suficiente para afastar, por si só, sua responsabilização (…) já que EDUARDO em tese poderia e deveria ter adotado, como se verá, atitudes ainda em sua gestão que refletiriam no incidente não só possivelmente evitando-o como diminuindo suas consequências, aí sim isentando-o de responsabilização”, afirma o magistrado, continuando:

“Sua omissão, assim, pelo contrário e ainda em linha de princípio face ao que consta dos autos até aqui em matéria de indícios, teria se alongado no tempo até, como dito, pouco mais de um mês depois ainda influir no evento danoso.”

Baseia-se o magistrado em afirmações do Ministério Público, que juntou documentos aos autos, mostrando que teria feito uma vistoria dois dias antes do incêndio constatando, entre outras questões, a ausência de um número mínimo de monitores para os jovens. E segundo o MP, esta era uma irregularidade conhecida pela gestão do ex-presidente.

Bandeira de Mello, por meio de seus advogados, disse que “mantém seu inconformismo em continuar figurando como acusado de fatos ocorridos após sua saída da presidência”.

Para o juiz, o clube, como instituição, cometeu erros que contribuíram para a morte dos adolescentes:

“o Clube de Regatas Flamengo (e não falo aqui de seus representantes ou prepostos, pessoas físicas, réus ou não) agiu, efetivamente, enquanto pessoa jurídica, i.e., adotando posturas institucionais neste sentido, de modo a ensejar a ocorrência trágica e fatídica retratada nos autos, sobretudo ao manter em atividade um Centro de Treinamento (CT) dedicado a adolescentes que nele pernoitavam sem alvará e sem autorização do Corpo de Bombeiros ao longo de quase uma década (desde 2012)”.

Contêineres em jovens dormiam pegaram fogo em fevereiro de 2019 — Foto: reprodução/video

Contêineres em jovens dormiam pegaram fogo em fevereiro de 2019 — Foto: reprodução/video

Na decisão, o magistrado também lamenta a ausência de responsabilização dos atuais dirigentes que, na sua visão, “deveriam” ter evitado as mortes:

“não fosse este magistrado antipunitivista, caberia aqui também lamentar que não tenham sido denunciados gestores, diretores e vice-presidentes da administração do Clube subsequente a EDUARDO já que o fato se deu aos 08 de fevereiro de 2019, então estando em plena atividade a nova administração que assumiu em janeiro daquele ano e poderia (mais que isto: deveria), de imediato, ter suspendido as atividades do CT até a devida regularização junto ao Corpo de Bombeiros e à municipalidade, o que provavelmente teria evitado esta tragédia”, escreve o magistrado.

Ao mesmo tempo que lamenta que a atual gestão não tenha sido responsabilizada, o magistrado afirma que não há nos autos provas de que a gestão anterior tenha informado aos novos gestores as condições irregulares apontadas pelo MP. Vale lembrar que parte dos responsáveis pela administração do Ninho do Urubu se mantiveram no cargo, mesmo com a troca da presidência e principais vices.

Peixoto também questiona se as autoridades públicas (no caso, Prefeitura e Corpo de Bombeiros) foram além da aplicação de “multas irrisórias” e apuraram suas responsabilidades no episódio:

“se estão sendo apuradas responsabilidades inclusive no âmbito administrativo dos agentes públicos que deveriam, no uso do poder de polícia municipal, ter concretamente interditado o CT do Flamengo, não se dando por satisfeitos, se contentando e dormindo tranquilos com a mera publicação de um Edital de Interdição ou com a cobrança de sucessivas multas irrisórias”, questionou.

Acordos “pífios”

Na decisão, o juiz também faz comentários sobre os acordos financeiros de indenização aos familiares das vítimas e aos funcionários que vivenciaram o incêndio. Segundo ele, por “motivo de economia” as negociações trouxeram indenizações em “valores pífios”:

“após toda a tragédia causada pela instituição, em parte gerada por motivo de economia (como veremos à frente), passou o Clube de Regatas Flamengo então – como que a “coroar” toda a sorte de ações e omissões que levaram ao desfecho aqui analisado – a celebrar acordos em valores pífios com os familiares das vítimas fatais, das vítimas lesionadas, jovens atletas e funcionários que presenciaram o ocorrido “, afirma na sentença.

Na defesa apresentada no processo, antes da decisão desta sexta, os advogados de Bandeira de Mello argumentaram que ele não pode ser responsabilizado pelo incêndio uma vez que a decisão de manter os jovens nos contêineres foi dos atuais gestores. E afirma, também, que as melhorias pedidas pelo MP quanto às instalações da base, feitas ao longo de anos enquanto ele era presidente, não se referiam aos contêineres, em si.

Além disso, os advogados afirmam que todas as exigências feitas pelos promotores e apresentadas na gestão de Bandeira teriam sido cumpridas. Na petição de defesa, eles anexam elogios feitos pelo MP às melhorias apresentadas.

Ao blog, a defesa de Bandeira de Mello enviou a seguinte nota:

“Eduardo Bandeira reitera sua solidariedade com as famílias das vítimas, mas mantém seu inconformismo em continuar figurando como acusado de fatos ocorridos após sua saída da presidência.

Apesar dessa nova e equivocada decisão, confia que a justiça será feita e que será absolvido, refletindo a verdade”.

O blog procurou o Flamengo para que se manifestasse sobre as afirmações contidas na sentença. O clube respondeu que:

“O Flamengo não é parte no processo e não tem nada a comentar sobre ele”. (Globo Esporte)