No mundo animal, o ato sexual pode custar à vida. E a vítima, na maioria das vezes, é o macho. O canibalismo sexual ocorre quando a fêmea mata e consome seu parceiro durante ou após o acasalamento. A prática é relativamente comum entre insetos e aracnídeos – e, por incrível que pareça, muitas vezes pode ser bom para a espécie.
Entre os animais que literalmente morrem por sexo, um dos casos mais conhecidos é o do louva-a-deus, espécie de insetos do grupo Mantodea. No ato sexual, o macho sobe no dorso da fêmea para iniciar o acasalamento, que é feito inserindo seu órgão genial – algo semelhante a um pênis – na abertura genital da fêmea na parte posterior do corpo. Nesse momento, a fêmea já decepa sua cabeça, iniciando o ato de canibalismo.
“Mesmo sem cabeça, o macho é capaz de continuar realizando a cópula (relação sexual). Concluída a relação, a fêmea devora o resto de seu corpo”, conta Antonio Carlos Lofego, professor do departamento de ciências biológicas da Unesp de São José do Rio Preto.
Viúvas-negras
Outra espécie que ficou famosa por esse comportamento são as aranhas Latrodectus, popularmente conhecidas como viúvas-negras. No caso delas, o canibalismo começa pelo abdômen.
“Em aranhas, geralmente, o macho é pequeno, menor que fêmea. Durante o acasalamento, ele se posiciona no ventre da fêmea onde realiza a cópula com um apêndice, o pedipalpo – uma espécie de ‘mão’ das aranhas”, explica Lofego.
Por não ter um órgão semelhante a um pênis para cópula direta, as aranhas realizam um cópula indireta com o uso do pedipalpo. Com isso, primeiro o macho coleta seu esperma com ponta do pedipalpo onde há um compartimento que se enche de esperma. Na sequência, com pedipalpo cheio, injeta o esperma na abertura genital da fêmea, que está na parte ventral no meio do seu corpo.
“Após a transferência do esperma, o macho se posiciona abaixo da boca e das quelíceras da fêmea – estrutura em forma de agulha para captura de presas. Ele, literalmente, se oferece espontaneamente como alimento para sua parceria sexual”, conta Lofego. Em seguida, ela o devora.
Mas não são apenas insetos e aracnídeos. Estudos mostram comportamentos de canibalismo sexual similares envolvendo a sucuri verde (Eunectes murinus) e até em algumas espécies de crustáceos.
Mas por que o canibalismo sexual evoluiu?
“Em muitas espécies de animais, principalmente os artrópodes, grupo que inclui os insetos, aranhas, crustáceos, entre outros, o processo de reprodução é a fase final de suas vidas. Nessa perspectiva, torna-se mais vantajoso para o macho usar sua morte como meio para deixar mais descendentes e mais bem nutridos do que deixar que seu corpo sirva de alimento para outros organismos”, afirma Lofego, da Unesp de São José do Rio Preto.
Para Rejane Lima, professora do Instituto de Biologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), o canibalismo sexual em populações naturais pode ser considerado como uma das estratégias relacionadas à evolução das espécies. “O canibalismo sexual possibilita a exclusão dos machos menos aptos através da seleção sexual, favorecendo os machos que expressam um comportamento mais adequado frente ao canibalismo sexual”, afirma.
A verdade é que pesquisadores ainda tentam decifrar o porquê de algumas fêmeas matarem e consumirem seus parceiros durante o acasalamento. Glauco Machado, professor do departamento de ecologia da Universidade de São Paulo (USP) conta que, entre os cientistas, já existe um conjunto de pelo menos quatro hipóteses. Vamos a elas abaixo:
Ferrageamento adaptativo: a fêmea obtém nutrientes adicionais ao consumir o macho, o que pode beneficiar a qualidade e a quantidade de seus ovos. Em algumas espécies de aranhas, o consumo do macho fornece proteínas essenciais para o desenvolvimento dos ovos. Estudos também indicam que as fêmeas do louva-a-deus, que canibalizam seus machos durante a cópula, produzem em média o dobro de ovos em relação às fêmeas que não expressam esse comportamento. Além disso, cientistas notaram que as fêmeas de louva-a-deus que canibalizam parte do corpo de seus machos, durante o acasalamento, ganharam 12 vezes mais massa corporal em comparação com as fêmeas que não canibalizam seus machos.
Transbordamento agressivo: quanto mais agressiva uma fêmea for em relação às suas presas, maior a probabilidade de ela canibalizar um potencial parceiro. Essa decisão não depende do valor nutricional do macho (ao contrário da hipótese acima), mas do estado agressivo da fêmea. Em uma espécie de aranha da Espanha, fêmeas que passaram fome durante o desenvolvimento têm uma probabilidade maior de atacarem e consumirem os machos antes e durante o acasalamento.
Escolha de parceiro: as fêmeas exercem a escolha de parceiro, rejeitando machos indesejados e inadequados ao canibalizá-los. Neste caso, vale ressaltar, que os eventos de canibalismo sexual tendem a acontecer antes que a cópula (relação sexual) ocorra. Ou seja, canibalizar ou não o parceiro faz parte do processo de escolha feminino, e esse comportamento é registrado para algumas espécies de aranhas.
Identidade equivocada: a fêmea pode confundir o macho com uma presa devido a sinais semelhantes, levando ao canibalismo. Por exemplo, algumas aranhas que constroem teia, a fêmea pode atacar o macho ao confundi-lo com uma presa quando este se aproxima e provoca vibrações na teia.
Segundo Rejane Lima, professora do Instituto de Biologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisas revelam que o canibalismo sexual é mais frequente, em algumas espécies, entre pares que estão fora do seu ambiente natural – laboratório, gaiolas ou aquários. “Estudos mostram que populações de louva-a-deus que vivem na Europa em seus ambientes naturais praticam três vezes menos o canibalismo sexual em comparação aos indivíduos confinados em laboratórios”.
Canibalismo sexual reverso
Embora raro, machos também podem predar fêmeas antes ou durante o sexo. É o caso da aranha Allocosa brasiliensis, que ocorre em dunas ao longo de boa parte da costa leste da América do Sul. A espécie vive uma ‘reversão de papéis sexuais’, com machos selecionando as fêmeas e elas disputando entre si acesso a eles.
“Os machos esperam as fêmeas em suas tocas, e aquelas que consideram muito pequenas as devoram, se acasalando apenas com aquelas com tamanho que consideram adequado para o acasalamento e produção de uma boa prole”, conta Antonio Carlos Lofego, professor da Unesp de São José do Rio Preto.
Pesquisadores do Uruguai fizeram um experimento com a espécie. Nele, expuseram 20 machos adultos a uma fêmea virgem e a uma fêmea acasalada. Durante o teste, os machos preferiram acasalar com fêmeas virgens e mais pesadas (provavelmente mais aptas á fecundação). Além disso, eles canibalizam 10% das fêmeas virgens e 25% das fêmeas acasaladas. “Como muitos eventos de canibalismo ocorreram antes da cópula, os autores discutem que a melhor hipótese para explicar o comportamento dos machos é a escolha de uma parceira”, diz Glauco Machado, professor da USP.
Por que o canibalismo sexual pode ser bom?
Além de nutrir as fêmas, o canibalismo sexual nem sempre é desvantajoso para os machos. O exemplo mais emblemático disso provavelmente seja o da aranha viúva-negra (Latrodectus). Machos da espécie que permitem o canibalismo sexual feminino conseguem copular por mais tempo e transferem mais esperma do que machos fujões – aqueles que evitam o canibalismo. Isso garante a sobrevivência da espécie na natureza.
“Como a quantidade de ovos fertilizados é diretamente proporcional à quantidade de esperma transferido, machos que permitem o canibalismo deixam mais filhotes”, explica Glauco Machado, professor da USP.
E os machos fujões poderiam ter chance de acasalar com outras fêmeas e conseguir mais filhotes? Bem, quase sempre isso não acontece, pois as fêmeas estão muito espaçadas na natureza. Portanto, a chance de um macho fujão encontrar uma fêmea que ainda não copulou durante a sua vida é muito baixa. Não dá para ganhar todas, né?
(Por Rone Carvalho)