As baleias estão entre os maiores mamíferos marinhos e de todo o planeta. Seu surgimento se deu por adaptações evolutivas de mamíferos terrestres, que “retornaram ao ambiente aquático” ao longo de milhões de anos — Foto: Charles J. Sharp/Wikimedia Commons

Quando o assunto é adaptação para o ambiente aquático, as baleias e os golfinhos são mais do que especialistas. Pertencentes ao grupo dos cetáceos, esses animais comem, dormem, reproduzem e até se comunicam debaixo d’água – tarefas impossíveis para a maioria dos mamíferos.

Mas como esses seres surgiram e se espalharam pelo planeta? É uma longa história, que remonta a um processo evolutivo iniciado a cerca de 50 milhões de anos atrás, no qual mamíferos terrestres pré-históricos foram gradualmente se inserindo no ambiente marinho. Ficou a cargo da seleção natural o trabalho de adaptação das espécies.

Nesta reportagem, vamos tentar sintetizar as principais reviravoltas evolutivas que possibilitaram a conquista do ambiente aquático pelos mamíferos após extinção dos dinossauros.

Classificação dos cetáceos

Até chegar no que hoje conhecemos como cetáceos modernos, os ancestrais das baleias passaram por mudanças em seus organismos, muitas delas verificáveis por fósseis. A própria definição de onde inserir o grupo na evolução dos mamíferos foi alvo de reformulações ao longo dos anos.

Um estudo publicado na revista científica Science descreve os cetáceos como parentes próximos ao hipopótamo e ambos sendo descendentes de artiodáctilos – mamíferos de casco e com número par de dedos, hoje representados por camelos, vacas e outros.

Porém, chegar nessa associação não foi simples: a maioria dos fósseis descobertos até o século 20 eram bem parecidos com baleias e golfinhos atuais, sendo difícil traçar relações antigas de parentesco.

Filogenia das baleias, extintas e vivas, e seus parentes próximos. A perda de características de mamíferos terrestres e o surgimento de adaptações ao ambiente marinho pode ser observado ao longo de cada nova espécie do grupo — Foto: John Gatesy, Carl Buell/Molecular Phylogenetics and Evolution
Filogenia das baleias, extintas e vivas, e seus parentes próximos. A perda de características de mamíferos terrestres e o surgimento de adaptações ao ambiente marinho pode ser observado ao longo de cada nova espécie do grupo — Foto: John Gatesy, Carl Buell/Molecular Phylogenetics and Evolution

Quem escuta o rabo encurta?

O veredito só chegou em 2007 com a descoberta do fóssil Indohyus no alto das montanhas do Himalaia, perto da divisa entre Paquistão e Índia. O artiodáctilo extinto lembra muito um pequeno guaxinim, e é descrito pelos cientistas como um mamífero com pelos, focinho, rabo longos e patas que terminavam em casco.

Na pesquisa publicada na revista científica Nature, fala-se de duas formações ósseas presentes no animal que revelam mais sobre seu parentesco com os cetáceos. A primeira é o chamado astrágalo, um osso do tornozelo que auxilia na movimentação e absorção de impactos. O formato dele no fóssil do Indohyus é característico de outros artiodáctilos e de cetáceos extintos.

No estudo da Nature, foram identificadas as formações do invólucro no ouvido do Indohyus, assim como foi feita uma reconstrução do esqueleto do animal, que tinha pernas — Foto: J. G. M. Thewissen/Nature
No estudo da Nature, foram identificadas as formações do invólucro no ouvido do Indohyus, assim como foi feita uma reconstrução do esqueleto do animal, que tinha pernas — Foto: J. G. M. Thewissen/Nature

Já a formação mais importante envolve os ossos do ouvido: na cavidade do ouvido médio de quase todos os mamíferos, temos a bula timpânica, um tipo de proteção para as estruturas que estão lá dentro. A virada de chave é que baleias e golfinhos têm a adição do invólucro, uma parte mais espessa dessa bula timpânica.

Estudos verificaram que, tirando todos os cetáceos, nenhum mamífero conhecido apresenta o invólucro, com exceção de um: o Indohyus.

“Esse era o elo perdido. (…) Isso [o invólucro] já indicaria uma adaptação para a audição subaquática, justamente porque o som se propaga na água e no ar de formas diferentes. Fala-se bastante disso pelo fato dos ossos do ouvido serem características importantes para diagnosticar os cetáceos”, diz Thayara Carrasco, doutora em Biodiversidade de Ambientes Costeiros pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), em entrevista à GALILEU.

Agora que temos um ponto de partida para os cetáceos antigos, é possível traçar um percurso evolutivo de seres que não necessariamente descendem um do outro, mas que compartilham um ancestral comum.

Inúmeras são as espécies que vagaram (ou nadaram) pela Terra antes da chegada de baleias e golfinhos modernos, de forma que as características do grupo como conhecemos hoje foram gradualmente adquiridas ao longo de milhões de anos. Uma das principais delas é a composição química dos ossos dos cetáceos, usada para entender se os animais viviam em água doce ou salgada.

Carrasco explica que a água ingerida do ambiente contém elementos importantes na formação de tecidos, como oxigênio e sais minerais. “No caso dos isótopos de oxigênio, normalmente os adquirimos da água ingerida. Eles vão ficar disponíveis no osso após a morte do animal. O ambiente marinho vai ser mais enriquecido em isótopos pesados do que o ambiente de água doce. Com base nessas diferenças, a gente consegue saber qual ambiente o animal vivia”, afirma.

Uma região em que esse tipo de estudo se faz valioso é a do antigo Mar de Tétis: localizado entre os supercontinentes Laurásia e Gondwana, ele foi o berço da evolução das baleias há 50 milhões de anos, no Eoceno. Próximo a suas orlas, no que hoje é o Paquistão, o fóssil do Pakicetus foi descoberto. O mamífero do tamanho de uma cabra também tinha modificações nos ossos do ouvido e hábitos semi aquáticos, possivelmente caçando alimento em leito de rios.

O fóssil do Pakicetus foi descoberto em depósitos de água doce no atual Paquistão — Foto: Nobu Tomura/Wikimedia Commons
O fóssil do Pakicetus foi descoberto em depósitos de água doce no atual Paquistão — Foto: Nobu Tomura/Wikimedia Commons

Seguindo alguns milhões de anos na história evolutiva, outras adaptações conhecidas dos cetáceos começam a tomar forma nas espécies pré-históricas do grupo, entre elas a redução das patas traseiras e o “nariz” – chamado espiráculo – rumando para o topo da cabeça para trocas gasosas mais rápidas no ambiente marinho.

Animais como o Remingtonocetus, que ainda se locomovia na terra e na água até 45 milhões de anos atrás, tinham o orifício respiratório bem na ponta do seu longo focinho. Porém, a “subida” do espiráculo já pode ser observada em crânios de cetáceos mais recentes, como os da família Protocetidae.

Essa família é considerada o principal estágio de transição que conecta os cetáceos modernos com os ancestrais terrestres, pois se acredita que os animais do grupo eram de natureza anfíbia, ou seja, viviam tanto na terra quanto na água.

Os seres da família Protocetidae já tinham as patas traseiras mais bem adaptadas ao ambiente marinho, assim como usavam o rabo para natação — Foto: John Klausmeyer/University of Michigan Museum of Natural History
Os seres da família Protocetidae já tinham as patas traseiras mais bem adaptadas ao ambiente marinho, assim como usavam o rabo para natação — Foto: John Klausmeyer/University of Michigan Museum of Natural History

Pesquisadores da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, mostraram, inclusive, que a posição de um feto fossilizado dentro do corpo da mãe sinalizaria que essas baleias primitivas ainda davam à luz em terra.

E falando em baleias primitivas, é por volta de 40 milhões de anos atrás que surge a família de cetáceos extintos mais próxima das baleias que temos hoje: a Basilosauridae. Dentro desse grupo, há uma grande diversidade de gêneros e tamanhos, indo desde pequenos cetáceos até espécies gigantes como o Basilosaurus e o Dorudon – nomes que significam, respectivamente, “lagarto rei” e “dente de lança”.

O Dorudon chegava ao tamanho de 5 metros, enquanto o Basilosaurus podia atingir até 20 metros — Foto: John Klausmeyer/University of Michigan Museum of Natural History
O Dorudon chegava ao tamanho de 5 metros, enquanto o Basilosaurus podia atingir até 20 metros — Foto: John Klausmeyer/University of Michigan Museum of Natural History

“Já são bem parecidos com os cetáceos atuais e tinham uma distribuição pelo mundo todo. Isso porque eles já eram 100% aquáticos, o que lhes concedia uma maior mobilidade. A pélvis era bem reduzida, então eles não conseguiam ir para a terra de jeito nenhum”, detalha Carrasco.

Os ossos pélvicos mencionados pela bióloga são o que chamamos de órgãos vestigiais – aqueles que, antes funcionais em ancestrais, atrofiaram ao longo da evolução. Eles ainda podem ser encontrados nas baleias vivas e, segundo um estudo publicado na revista científica Evolution, ajudam esses animais no desempenho sexual.

No canto inferior esquerdo da imagem, é possível observar o órgão pélvico do esqueleto do cetáceo extinto, já sem ligação com a coluna vertebral — Foto: EvaK/Wikimedia Commons
No canto inferior esquerdo da imagem, é possível observar o órgão pélvico do esqueleto do cetáceo extinto, já sem ligação com a coluna vertebral — Foto: EvaK/Wikimedia Commons

Dentes vs Barbatanas

Há 35 milhões de anos, enfim, chega-se ao surgimento dos cetáceos que encontramos hoje no ambiente marinho. Podemos dizer que aqui está o pacote completo, no qual os animais pouco se assemelham a seus parentes do Eoceno: sem a presença de pelos ou qualquer resquício de patas traseiras, com o nariz já no topo da cabeça e o aumento dos ossos das nadadeiras.

Dentro da boca de uma baleia-jubarte, podem ser vistas tanto a língua quanto as barbatanas de quitina na mandíbula superior do animal — Foto: Marco Fumasoni/Flickr
Dentro da boca de uma baleia-jubarte, podem ser vistas tanto a língua quanto as barbatanas de quitina na mandíbula superior do animal — Foto: Marco Fumasoni/Flickr

Ainda assim, vale mencionar a divisão desses seres em dois grupos importantes: misticetos – grupo das baleias-jubarte a baleias-azuis – e odontocetos – que inclui orcas, cachalotes e golfinhos.

Enquanto os odontocetos possuem dentes, os misticetos desenvolveram barbatanas filtradoras – placas triangulares de quitina, que ficam presas na mandíbula superior do animal e filtram alimento. Outras diferenças também envolvem o número de orifícios respiratórios e a capacidade de ecolocalização por parte dos odontocetos.

“Essa diversificação [entre misticetos e odontocetos] aconteceu com a separação da Antártida e da Austrália, que permitiu a existência de uma corrente oceânica em volta da Antártida resfriando o hemisfério sul”, conta a pesquisadora. Segundo ela, as águas mais frias são mais produtivas: isso explica porque as baleias passam o verão nas águas gélidas da Antártida, onde se alimentam de krill. Uma grande jornada a desses cetáceos, não?

(Por Fernanda Zibordi)