A pergunta assombra o futebol brasileiro. Uns culpam Telê Santana por não ter segurado o empate. Outros olham para os erros individuais de Júnior no primeiro e no terceiro gol. Melhor do time naquela Copa, Falcão até reuniu todo mundo e escreveu um livro com as respostas. Há 38 anos, todo brasileiro busca as razões da derrota para a Itália na Copa de 1982 – reprisada pelo SporTV na Faixa Especial – para chegar à conclusão de que não há uma resposta.
A resposta existe se o Brasil se voltar a seu passado com respeito e depois com olhar crítico para buscar melhorar no futuro. A pergunta que todo mundo deveria se fazer em julho de 1982, e que nunca foi feita em nenhuma Copa do Mundo, é simples: “o que fazer agora para que amanhã não aconteça o mesmo erro de ontem?” Não demonizar técnicos, eleger culpados (lembre das ofensas racistas que Fernandinho recebeu após o jogo contra a Bélgica em 2018) ou tratar a derrota com uma tragédia dramática. Apenas ver o jogo e encontrar as respostas nele.
Brasil se defendia com escola de marcação que Telê aprendeu com Zezé Moreira
Como você leu aqui, Telê Santana dava total liberdade e cobrava movimentação constante de seus jogadores na fase ofensiva, com a posse de bola. Sem ela, na defesa, o Brasil tinha que seguir um plano: todo mundo voltava até a linha do meio-campo e formava uma espécie de 4-2-3-1. Pense pela lógica: se os jogadores se movimentam e trocam de posição, quando o time perde a bola, eles estarão longe de seus “lugares de origem”. Por isso havia uma lógica bem definida de coberturas: era preciso ir até o lugar do companheiro e preencher o espaço se ele estava muito longe. Aqui, Serginho cobre Zico e mantém o desenho.
Brasil sem a posse de bola, com Serginho ocupando o espaço de Zico — Foto: Leonardo Miranda
Vendo a reprise, é até surpreendente como o Brasil jogava recuado e muitas vezes criava no contra-ataque. É bom ver jogos antigos porque eles destroem ideias sem pé nem cabeça, como a mentira de que Guardiola se inspirou nessa seleção – tema para outro texto. Foco: sim, o Brasil se defendia até que bem e compacta. Seguia a escola dos encaixes de marcação, que Telê Santana aprendera com Zezé Moreira no Fluminense de 1951. Como funciona? Cada jogador tem um setor e deve acompanhar até o fim quem “invade” esse setor. O famoso “cada um pega o seu”. Olha isso acontecendo quando a Itália vai sair com a bola:
Brasil fazendo encaixes na Itália — Foto: Leonardo Miranda
Adendo: na época, não existia 4-2-3-1. O Brasil era um 4-3-3, ainda que a década de 1980 tenha sido uma fase de transição entre o 4-3-3 e o 4-2-2-2 com o “falso-ponta”, criado por Zagallo e Rubens Minelli na década de 1960.
Primeiro gol nasce de erro coletivo pelo lado direito
O primeiro gol nasce de um erro coletivo nesse sistema de marcação. É preciso ir até a origem da jogada para entender o posicionamento. Assim que o Brasil perde a bola, a Itália sai jogando pela esquerda. Serginho segue direitinho o script: fecha o lado enquanto Éder está centralizado. Como todo mundo troca de posição sem a bola, é preciso ser rápido para ir acompanhando o adversário e temporizar o jogo para que todo mundo volte até suas posições.
Serginho cobre Éder, que troca de posição com Zico — Foto: Leonardo Miranda
A Itália consegue escapar dessa primeira marcação e Éder também segue seu papel: ele preenche o lado esquerdo e Falcão e Cerezo sobem até o lado para tentar roubar a bola. Na imagem, você também consegue ver que Sócrates se posiciona pelo meio-campo. Lembra que o time deve formar um 4-2-3-1 sem a bola? A linha de meias tem Éder, Sócrates…e quem deveria ir pelo lado direito? Zico. Serginho já cobriu Éder. Já fez seu papel dentro de campo.
Éder retoma à posição de origem, mas volantes ficam muito — Foto: Leonardo Miranda
Era dever de Zico fechar o lado direito que ficou completamente aberto na virada de jogo. Existe um longo debate sobre quem deveria jogar nesse lado direito. Paulo Isidoro, jogador de dinâmica e bom passe, foi titular no Mundialito e em todas as boas exibições do Brasil no pré-Copa. A opinião pública defendia que um ponta tradicional deveria ocupar o lugar – vem daí o bordão “bota ponta, Telê”. A verdade é que tanto faz. Paulo Isidoro poderia preencher melhor esse lado? Sim. Mas Zico preencheu durante toda a Copa, assim como Sócrates.
Lado direito totalmente aberto a Cabrini — Foto: Leonardo Miranda
Mas é injusto culpar Zico. A organização do futebol existe justamente para que tarefas sejam divididas – algo que a série The English Game, da Netflix, conta muito bem. Leandro até deveria ter pressionado, mas quando o cruzamento é feito, os zagueiros brasileiros estão marcando Graziani e Paolo Rossi, com a devida cobertura de Cerezo. Só que Graziani foi tão esperto no lance que ele faz o famoso facão – um movimento diagonal para a área – com o intuito de arrastar e tirar o adversário de posição. Esse facão atrai a atenção de Luisinho e Oscar, e há a troca de encaixe: Paolo deixa de ser responsabilidade de Luisinho e passa a ser de Júnior, que teve pouquíssimo tempo para ler tudo e chega atrasado.
Marcação individual no cruzamento da Itália — Foto: Leonardo Miranda
Segundo gol nasce em erro na saída de bola
O segundo gol é um, ao mesmo tempo, um azar grande, uma inteligência imensa de Paolo Rossi e um erro coletivo de ocupação de espaço. Após uma cobrança de falta, Waldir Peres escolhe sair pelo lado direito, com Leandro. Ele viu que Júnior, seguindo a ideia de liberdade para se posicionar (desde que perto do companheiro), estava ao centro. Leandro toca para Cerezo, que erra um passe fácil….gol de Paolo Rossi.
Paolo Rossi rouba a bola de Falcão no segundo gol — Foto: Leonardo Miranda
Faltou um pouco de coordenação ao ocupar o espaço para sair. Talvez o principal erro seja de Oscar, que se aproxima muito de Leando e deixa Luisinho muito sozinho contra dois atacantes italianos. Falcão e Júnior estão praticamente na mesma faixa de campo, sendo que há um espaço na frente de Cerezo que poderia estar preenchido por Falcão. Observe bem que o juiz corre para lá…porque o juiz sempre corre nos espaços vazios.
Faixa Especial relembra entrevista de Telê Santana e mostra jornais de antes de Brasil x Escócia na Copa de 1982
É muito importante tocar nesse ponto, porque todo o dilema entre “técnica vs tática”, “organização vs liberdade” é vista de um prisma totalmente errado. Como sempre, é um jogo de extremos: uns defendem uma europeização total, outros defendem a retomada da liberdade criativa. Nem um, nem outro. Talento é maximizado quando há organização, e uma organização que encaixa mal o talento, na verdade, “desorganiza” o time.
Terceiro gol: a famosa desatenção na bola parada
2018. 2014. 2010. 2006. 1998. 1982. O que todas essas Copas têm em comum? O fato de que a seleção tomou um ou mais gols num lance de bola parada. Problema recorrente, o terceiro gol é fruto d eu erro de Júnior na bola parada. O Brasil marcava individual, com dois jogadores no primeiro pau para afastar a bola – até hoje é feito assim. Sócrates não afasta a bola, e Júnior fica vendido quando Paolo Rossi chuta ao gol. Talvez esse não seja um erro. Talvez falte reconhecer a qualidade de Rossi nessa jogada, como falta reconhecer que a Itália tinha um grande time e amarrou o Brasil.
Carrasco em 1982, Paolo Rossi afirma: “Sempre pensei que poderia vencer o Brasil”
O torcedor tem o direito de chorar e sentir essa derrota. A emoção faz parte do futebol, que existe há mais de 150 justamente para nos tirar da rotina. Mas quem faz futebol, como técnicos, jogadores, dirigentes e jornalistas, precisa olhar para o jogo com um viés mais pró-ativo. Há 38 anos, o Brasil lamenta ter perdido uma Copa na qual encantou e era favorito, mas nunca entendeu o porquê perdeu, ou buscar melhorar internamente – com formação de técnicos, base, clubes organizados – para superar 1982.
A Seleção de 1982 merece e deve ser tratada com carinho pela reunião de craques e o futebol jogado. Mas ela faz parte de um passado do qual precisamos cicatrizar para vencer outra Copa. (Globo Esporte)