O Brasil é conceituado como Estado Democrático de Direito, ou seja, o Direito é o paradigma do agir estatal e de seus cidadãos, com instituições e escolhas democráticas, prevalecendo a vontade geral, explicitada pela lei.

Com efeito, no último dia 14 de agosto fora aprovada, com votação simbólica em sessão deliberativa extraordinária na Câmara dos Deputados, o projeto de lei nº 7.596 de 2017, de iniciativa do Senador Renan Calheiros, que visa ser o modelo de antiabuso para as autoridades pátrias, incluindo, segundo os parlamentares, eles próprios, apesar dos tipos previstos não abarcarem a atividade legislativa, mas sim, o trabalho de juízes, membros do Ministério Público e forças de segurança pública.

A inovação legal tem o objetivo de modernizar a Lei nº 4.898 de 1965, sancionada pelo Presidente Castello Branco, primeiro dos Presidentes da “Revolução” de 1964, contudo, apesar de a boa vontade do legislador em modernizar o sistema antiabuso, houve, nos moldes do regime de outrora, termos e expressões vagas e passíveis de interpretação equívoca, pois, assim como nas leis de segurança nacional utilizadas naquela época, a novidade legal pode ensejar interpretações punitivas descabidas.

A criatividade sempre é benfazeja e motor da modernização humana, no entanto, tal criatividade deve ser contida quando se trata de matéria punitiva e persecutória, seja administrativa ou penal, porque nessas searas a criatividade deve ceder lugar à legalidade estrita, a fim de impedir punições decorrentes de mero autoritarismo.

Para mero cotejo histórico rememore-se a primeira lei de segurança nacional, dentre as quatro publicadas naquele regime, a de 13 de março de 1967 prescrevia no art. 33 descrições extremamente vagas, as quais permitiam a punição sem qualquer força exegética, haja vista que dentre as condutas estava de incitar a subversão da ordem político-social, sem definir o que seria atividade subversiva, isto é, tal expressão servia de carta branca para punição.

Nesse mesmo diapasão, surge a inovação proposta, não obstante debatida sob manto democrático, o texto é permeado por termos genéricos, possibilitando punições, por exemplo, pela simples revogação de prisão pelo juízo revisor, como descreve o art. 9º do projeto do abuso: “decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”, ora, diuturnamente, os tribunais revisam decisões de primeira instância, os tribunais superiores, por conseguinte, dos tribunais regionais e estaduais, sem que isso implique em abuso de quem a decretou com entendimento diverso, pois a revisão de decisão é comum à dialética da ciência jurídica, todavia pela novidade antiabuso, isso seria crime com pena privativa de liberdade de até quatro anos.

Na mesma linha, assinala que a instauração de inquérito ou procedimento investigativo “em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa” passa a ser crime. Cabe lembrar que todo procedimento investigativo tem o objetivo de reunir indícios de autoria e prova de materialidade de uma infração, isto é, o escopo da investigação não pode ser obtido antes do início, pois, caso sancionada a proposição legal, não será possível começar a investigar sem indício, ou seja, o referenciado projeto antiabuso requer que se investigue apenas o fato já conhecido e induvidoso.

Enfim, sob o argumento de conter eventuais e existentes abusos, a lei antiabuso é pretexto para impedir ou, ao menos, dificultar a ação do sistema de justiça contra o crime organizado e ilícitos de maior monta.

*MÁRCIO GONDIM DO NASCIMENTO é Promotor de Justiça desde 2003, atualmente 8º Promotor de Campina Grande (2º Tribunal do Júri). Professor de Prática Processual Penal no IESP desde 2007. Especialista em Direito Constitucional, Ciências Criminais e Enfrentamento à Corrupção. Presidente da Associação Paraibana do Ministério Público (APMP)

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