A “doença do Nobel”: quando cientistas premiados resolvem se meter onde não deviam — Foto: Wikimedia Commons

A vida cotidiana é cheia de crendices que as pessoas dão como certezas. Por exemplo: não deixar chinelo virado “para a mãe não morrer” e não misturar manga com leite para não passar mal. A ciência por trás disso? Nenhuma.

Mas talvez seja surpreendente saber que alguns dos responsáveis por espalhar pseudociências por aí são os vencedores do Nobel, o mais prestigiado prêmio do mundo em alguns campos do conhecimento (Física, Química, etc.). Geralmente, essas bobalhadas não têm a ver com a área de expertise do profissional em questão — mas estima-se que, envaidecidos pela conquista do prêmio, eles tenham se sentido empoderados a hablar mesmo assim.

Esse costume dos laureados de compartilhar informações equivocadas em áreas onde não deveriam se meter ganhou até apelido: Doença do Nobel, ou Nobelitis. Curiosamente, há uma lista longa de premiados que se encaixam entre os “doentes”.

Por que os vencedores do Nobel acham que podem sair por aí falando o que quiserem? Paul Nurse, geneticista britânico que venceu o Nobel de Medicina em 2001, tem uma explicação. “Aos olhos de muitas pessoas, eu havia de repente me tornado um dos maiores especialistas mundiais em quase tudo. Isso foi um verdadeiro choque. Eu de fato sei algo sobre biologia e ciência de forma mais geral, mas especialista em tudo, certamente não sou”, explicou ele em uma entrevista.

E ainda deu dicas para futuros vencedores: “Você será inundado com pedidos para comentar sobre uma ampla variedade de questões, assinar cartas e petições e, de modo geral, emprestar seu nome a causas, algumas nobres, outras nem tanto”, disse. “Mas não seja tentado a se desviar da sua especialidade ou da ciência em geral”.

No livro Critical Thinking on Psychology (Pensamento Crítico na Psicologia), quatro pesquisadores das universidades de Melbourne e Emory listaram alguns desses casos. Veja abaixo:

Linus Pauling, vencedor do Nobel de Química em 1954

Diagnosticado com a doença de Bright, que causa inflamação crônica nos rins, passou a ingerir suplementos vitamínicos. Depois que se curou, atribuiu sua melhora a eles, e não ao tratamento médico. Posteriormente, ele alegou que 1000 miligramas de vitamina C por dia podem reduzir a incidência de resfriados comuns em 45%, embora a dose diária recomendada seja de 60 miligramas. Pauling ainda afirmava que a vitamina C pode curar o câncer. Ele supostamente consumia pelo menos 12.000 miligramas de vitamina C diariamente (e até 40.000 miligramas quando sentia que estava ficando resfriado).

William Shockley, vencedor do Nobel de Física em 1956

Após sua atuação na Física, desenvolveu interesse por genética e acabou se aproximando de ideias racistas. Em um programa de televisão em 1974, Shockley afirmou: “Minhas pesquisas me levam inevitavelmente à opinião de que a principal causa dos déficits intelectuais e sociais do negro americano é de origem hereditária e genética racial e, portanto, não pode ser significativamente corrigida por melhorias práticas no ambiente”. Shockley propôs a ideia de “evolução regressiva”, alegando que os negros estavam se reproduzindo mais rapidamente do que os brancos, o que levaria a uma queda na inteligência geral da população.

Brian Josephson, vencedor do Nobel de Física em 1973

No final da década de 1960, Josephson tornou-se seguidor de Maharishi Mahesh Yogi, fundador da meditação transcendental, uma técnica que supostamente induz um estado de consciência novo por meio do uso de um mantra, uma palavra específica repetida várias vezes. Josephson argumentava que essa meditação “permite que experiências traumáticas retornem sem repressão à visão da mente”.

meditação transcendental tem benefícios científicos comprovados, mas recuperar memórias reprimidas certamente não é um deles. Ele também acreditava em telepatia e “memória da água”, a ideia de que a água consegue “lembrar” das propriedades de substâncias que um dia já foram dissolvidas nela.

Pierre Curie, vencedor do Nobel de Física em 1903

Participou de sessões mediúnicas com supostos médiuns e acreditava que investigações sobre o paranormal poderiam responder a perguntas sobre magnetismo.

John William Strutt, vencedor do Nobel de Física em 1904

Tinha interesse por parapsicologia e atuou como presidente da Sociedade de Pesquisa Psíquica, uma entidade civil britânica que investigava o paranormal.

Nikolaas Tinbergen, vencedor do Nobel de Medicina em 1973

Após o Nobel, passou a estudar o autismo e, contrariando as evidências científicas de que o TEA é causado por fatores genéticos e neurológicos, defendia que a causa vinha do ambiente em que a criança era criada. Em particular, ele acreditava que o autismo era causado por uma desconexão entre mãe e filho, por isso defendia a “terapia de contenção”, que consistia em segurar o pequeno por longos períodos para reconstruir esse laço, inclusive forçando contato visual, mesmo que a criança resistisse. Suas opiniões foram amplamente discutidas, mas nunca comprovadas.

Kary Mullis, vencedor do Nobel de Química em 1993

Em sua autobiografia de 1998, Mullis expressou forte discordância com a visão de que a AIDS é causada pelo vírus HIV, afirmando que esse retrovírus é quase indetectável em pessoas com AIDS. Uma grande bobagem, é claro, pois há pesquisas conclusivas que mostram que o vírus HIV causa a AIDS. Ele também acreditava em astrologia (a ideia de que o alinhamento dos planetas na hora do nosso nascimento influencia nossa personalidade) e que o aquecimento global, se existia, não podia estar sendo causado por humanos.

Richard Smalley, vencedor do Nobel de Química em 1996

Era anti-Darwinista e questionava a Teoria da Evolução. “Considerando a minha experiência em química e física, está claro que a evolução não pode ter ocorrido”, disse ele em 2005.

Louis J. Ignarro, vencedor do Nobel de Medicina em 1998

Após o prêmio, ele se tornou consultor e membro do Conselho Científico da Herbalife, empresa que comercializa suplementos alimentares. Passou a desenvolver pesquisas que, em tese, comprovam o sucesso do Niteworks, um dos produtos da companhia. Um de seus artigos, publicado em 2004 no Proceedings of the National Academy of Sciences, foi aprovado sem revisão por pares e sem que Ignarro revelasse sua participação na empresa. Mais tarde, o periódico publicou uma correção, citando o “conflito de interesses” do pesquisador. Até hoje, não há comprovação científica de que suplementos do tipo funcionam.

Luc Montagnier, vencedor do Nobel de Medicina em 2008

Um ano após receber o Prêmio Nobel, Montagnier publicou um artigo na revista Interdisciplinary Sciences: Computational Life Sciences, um periódico que ele mesmo fundou e editava. Neste trabalho, ele argumenta que o DNA diluído de vírus e bactérias causadores de doenças pode emitir ondas eletromagnéticas. Segundo ele, a maioria das doenças neurológicas, incluindo Alzheimer, Parkinson, autismo e esclerose múltipla, surge das ondas eletromagnéticas emitidas pelo DNA viral ou bacteriano em soluções aquosas. Mas não é só! Ele também afirma que a AIDS, assim como o autismo, pode ser tratada com remédios naturais não testados, como métodos dietéticos, probióticos e antibióticos, e promoveu essa ideia no filme negacionista do HIV/AIDS House of Numbers em 2011.

Além disso, Montagnier utiliza a teoria quântica de campos para promover o conceito de “teletransporte de DNA”, segundo o qual o DNA poderia se teletransportar entre tubos de ensaio e se replicar em soluções aquosas distantes. Ele ainda sustenta que as vacinas causam autismo, hipótese que já foi amplamente desmentida por pesquisas científicas.

Charles Richet, vencedor do Nobel de Medicina em 1913

Acreditava fortemente no conceito de mediunidade e defendia que, em algumas sessões, o médium seria capaz de projetar um tipo especial de substância, à qual deu o nome de “ectoplasma” (termo que ganhou fama com o filme Os Caça-Fantasmas, de 1984). Também era eugenista e chegou a defender a esterilização de pessoas com deficiências mentais.

(Por Victor Bianchin)