Um dos personagens mais estudados da história moderna volta ao centro de uma polêmica que mistura genética, psicologia e ética científica. O documentário Hitler’s DNA: Blueprint of a Dictator (O DNA de Hitler: O Projeto de um Ditador, em tradução livre), que estreia neste sábado (15) no canal britânico Channel 4, promete revelar “segredos biológicos” do ditador nazista a partir da análise de seu suposto material genético. Veja teaser:
A produção britânica, assinada pela Blink Films, alega ter identificado, no DNA atribuído a Adolf Hitler, sinais de um possível diagnóstico de Síndrome de Kallmann. Essa doença genética rara afeta o desenvolvimento sexual masculino na puberdade, e pode causar baixa concentração de testosterona no corpo, criptorquidia (testículo não descido), alteração sensorial da percepção de cheiros e micropênis.
Como destaca o portal Deadline, essas conclusões foram apresentadas com ênfase dramática no material promocional do filme, que também afirma ter encontrado “pontuações genéticas elevadas” associadas a neurodivergências. No caso de Hitler, ele teria marcações para autismo, esquizofrenia e transtorno bipolar. Ao mesmo tempo, o filme refuta a antiga teoria de que o führen teria ascendência judaica.
A jornada da (suposta) amostra de sangue
O DNA analisado teria origem em um pedaço de tecido ensanguentado cortado do sofá onde Hitler se suicidou, em abril de 1945. O artefato, preservado em um museu militar na Pensilvânia, nos Estados Unidos, foi identificado por pesquisadores britânicos e submetido a testes genéticos em laboratórios de alta precisão.
Ao Deadline, a produtora Lesley Davies conta que a confirmação da autenticidade da amostra foi um processo demorado e rigoroso. “Quando conseguimos a correspondência e soubemos que era realmente sangue de Hitler, tivemos que confirmar e reconfirmar várias vezes para garantir que o perfil fosse sólido”, lembra ela.
Tal correspondência teria sido verificada a partir de uma amostra de DNA de um parente de Hitler por linha paterna, coletada anos antes por um jornalista belga durante uma investigação sobre um possível filho ilegítimo do ditador. O jornal The Guardian relata que os produtores obtiveram uma correspondência perfeita no cromossomo Y. Não está claro, no entanto, se o parente em questão autorizou o uso de seu DNA para essa nova finalidade – o que levanta questões éticas.
Genética do ditador
O documentário intercala o trabalho laboratorial com entrevistas de especialistas. Dentre eles, a geneticista Turi King, reconhecida por confirmar a identidade dos restos mortais do rei Ricardo III, e o historiador Alex Kay, da Universidade de Potsdam, especialista na era nazista.
King explica no programa que a deleção de uma letra no gene PROK2 foi o principal indício genético da Síndrome de Kallmann em Hitler. A mutação impede o início ou a conclusão da puberdade, o que coincide com registros médicos de 1923, encontrados nos arquivos da prisão de Landsberg, nos quais um médico atestou que Hitler tinha “criptorquidia do lado direito”.
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Esse achado reforça uma antiga hipótese popularizada durante a Segunda Guerra Mundial, que falavam que o ditador tinha “apenas um testículo”. A acusação aparece até em uma paródia da marcha britânica Colonel Bogey, que recebeu o nome bastante gráfico Hitler Has Only Got One Ball (Hitler Só Tem Uma Bola, na tradução literal).
Risco do determinismo biológico
O documentário, porém, não se limita à biologia. Ele tenta associar a genética de Hitler a transtornos mentais e comportamentais, usando o método das pontuações de risco poligênico (PRS). Essa ferramenta estatística estima a predisposição genética de um indivíduo a certas condições com base na combinação de centenas de variantes genéticas.
Tais resultados levaram os produtores a afirmarem que Hitler tinha “alta probabilidade de autismo, esquizofrenia e comportamento antissocial”. O problema, segundo especialistas ouvidos pelo The Guardian, é que tais extrapolações são cientificamente frágeis. “As pontuações de risco poligênico informam algo sobre a população em geral, não sobre indivíduos”, explica David Curtis, professor do Instituto de Genética da University College London.
King mesmo manifestou desconforto com a forma como os resultados foram apresentados na obra. “Não podemos afirmar com certeza que Hitler tinha esses transtornos — apenas que ele estava no percentil mais alto para algumas delas”, destaca ela. Em trechos do filme, no entanto, a narração transforma “acima da média” em “propensão” e, logo em seguida, em “diagnóstico implícito”. Para os cientistas, essa é uma distorção bastante perigosa.
Como apontou a revista New Scientist, ainda que esses diagnósticos existissem, eles não deveriam servir para balizar qualquer coisa. Simon Baron-Cohen, um pesquisador da Universidade de Cambridge que aparece no documentário, argumenta que a negligência e os abusos que Hitler sofreu nas mãos do pai alcoólatra são “muito mais relevantes para entender por que ele cresceu com ódio e raiva” do que possíveis condições genéticas poderiam explicar.
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