Crânio descoberto em caverna em Israel / Crédito: Divulgação/Universidade de Tel Aviv/Centro Dan David de Evolução Humana

Até o fim da década de 1990, era consenso na comunidade científica que os neandertais (Homo neanderthalensis) e os humanos modernos (Homo sapiens) não poderiam ter se cruzado, visto que eram duas espécies distintas. Hoje, no entanto, sabemos que não é bem essa a verdade: em vez de os humanos modernos terem dizimado os neandertais através da violência, na verdade, as duas espécies se misturaram até que se tornassem uma coisa só — e hoje temos uma herança genética neandertal que varia entre 1% e 5%.

Porém, os detalhes dessa miscigenação ainda são incertos para muitos cientistas; como, por exemplo, quando ela teve início. Em 1998, foi descoberto um esqueleto de um menino em Lapedo, Portugal, que viveu há cerca de 19 anos mil anos e tinha características mistas entre sapiens e neandertais, evidenciando uma hibridização — o que foi confirmado na década de 2010, quando foi sequenciado o primeiro genoma neandertal.

Mas há quase um século, em 1931, a arqueóloga britânica Dorothy Garrod e o antropólogo físico americano Theodore McCown exploraram a região noroeste de Israel, e em uma das cavernas do Monte Carmelo realizaram uma descoberta que pode ser revolucionária para a compreensão da evolução da nossa espécie: o crânio de uma criança que viveu há 140 mil anos, cuja morfologia, segundo uma pesquisa recente, pode ser a evidência mais antiga de miscigenação entre os neandertais e os humanos modernos.

“O que dizemos agora, na verdade, é revolucionário”, explica o paleoantropólogo israelense Israël Hershkovitz, professor do Departamento de Anatomia e Antropologia da Universidade de Tel Aviv, em Israel, e líder da pesquisa, à BBC News Mundo. “Nós demonstramos que o primeiro encontro entre os neandertais e o Homo sapiens não ocorreu há cerca de 50 mil anos, como se imaginava, mas sim pelo menos cerca de 100 mil anos antes, há 140 mil anos, o que é extremamente significativo.”

Caverna em que crânio foi descoberto / Crédito: Divulgação/Universidade de Tel Aviv

Skhul 1°

Denominado Skhūl 1° — porque foi o primeiro fóssil encontrado por Garrod e McCown quando exploraram a região —, o que os pesquisadores puderam determinar foi que ele morreu de causas naturais, e com pouca idade. Infelizmente, não se sabe muito sobre como ele viveu, e nem é possível determinar seu sexo biológico ou a doença que pode ter causado sua morte tão jovem.

Mas o que se sabe é que ele foi enterrado ao lado de outras crianças e adultos, no que os pesquisadores consideraram ser um cemitério coletivo — sendo este considerado o cemitério mais antigo conhecido. No novo estudo, publicado na revista L’Anthropologue, a morfologia de seu crânio e de sua mandíbula (que acabou se separando do esqueleto durante a escavação) foi reavaliada através de imagens de tomografia computadorizada e reconstruções em 3D.

E foi quando o crânio foi comparado ao de outras crianças, tanto Homo sapiens quanto neandertais, que os cientistas observaram “uma natureza em mosaico das suas características morfológicas” e uma “dicotomia morfogenética”, de acordo com Hershkovitz. A estrutura craniana tinha traços bastante próprios do Homo sapiens, enquanto a mandíbula tinha “forte afinidade” com o grupo dos neandertais, o que causou grande impacto nos estudiosos.

“A combinação de traços observada em Skhūl 1° pode indicar que a criança era um híbrido“, segundo o estudo. Antes disso, a criança era simplesmente classificada como um Homo sapiens comum, mas o que os pesquisadores sugerem agora é que é “quase impossível” classificá-lo em apenas um dos grupos.

Vale mencionar que o termo “híbrido” não indica que ele era diretamente filho de um neandertal com um Homo sapiens, mas fruto de uma miscigenação progressiva entre as espécies. “Nós o chamamos de população com introgressão, o que significa que os genes de uma população penetraram lenta e gradualmente no outro grupo”, explica Hershkovitz. “Por isso, na realidade, o que observamos em Skhūl é uma população quase sapiens, mas com maior proporção de genes neandertais“.

Dessa forma, o que os pesquisadores sugerem é que essa criança seja classificada como membro de um “paleodemo”, uma população caracterizada por grande diversidade biológica devido à miscigenação, mas que deve ser reconhecida como um grupo particular, dentro de sua própria espécie.

Dúvidas

Apesar das constatações recentes sobre Skhūl 1°, nem todos os cientistas estão de acordo com a conclusão de que ele pode ser o híbrido mais antigo que conhecemos. O professor de pesquisa Antonio Rosas, do Departamento de Paleobiologia do Museu Nacional de Ciências Naturais da Espanha, por exemplo, questiona algumas das descobertas.

Ele afirma à BBC que se basear em uma conjunção de uma base do crânio própria de Homo sapiens e uma mandíbula semelhante à anatomia de neandertais “tem pouco sentido biológico“. “A determinação genética da anatomia é complexa e não costuma ser distribuída tão hermeticamente em elementos ósseos isolados, como o crânio e a mandíbula”, explica Rosas.

Além disso, ele também ressalta que outro humano antigo, também proposto como híbrido, descoberto em Portugal, possui uma mandíbula certamente mais próxima à de um homo sapiens, ao contrário de como é com o Skhūl 1°. Logo, não há sequer uma evidência de que esses híbridos teriam essa característica semelhante à dos neandertais.

O que Rosas afirma é que o enterro pode, simplesmente, ter sofrido alterações posteriores ao sepultamento. “A possibilidade de que a mandíbula de Skhūl 1° seja de um indivíduo neandertal que tenha ido parar no túmulo de um Homo sapiens deve ser considerada”, destaca

“Sem dúvida, aqui há um problema metodológico”, complementa Rosas. “A hibridização entre espécies humanas nunca foi declarada de forma incontestável com dados paleogenômicos. Apenas com dados morfológicos, atualmente é difícil assegurar estes fenômenos. Desconhecemos, em grande parte, como a combinação das informações genéticas de neandertais e Homo sapiens se expressa na anatomia”.

Além de Rosas, há mais cientistas que também apresentaram preocupações semelhantes quanto ao estudo. Agora, espera-se por uma análise de DNA mais completa e detalhada de Skhūl 1°, a fim de verificar com mais certeza as conclusões do estudo.

Mandíbula do menino híbrido descoberto em Israel / Crédito: Divulgação/Universidade de Tel Aviv

Coexistência de Espécies

Outro aspecto bastante relevante que a descoberta de Skhūl 1° revela, para além da suposta hibridização entre Homo sapiens e neandertais, é a colaboração que pode ter existido entre esses dois grupos. Com isso, também surgem novas perspectivas sobre as práticas culturais existentes na época, que em geral são historicamente associadas apenas ao ser humano moderno.

“O mais dramático e mais importante é que, agora, sabemos que os dois grupos conseguiram viver lado a lado por um período de tempo muito longo”, destaca Hershkovitz. Isso é importante pois contraria a ideia muito propagada de que os Homo sapiens se impuseram frente às demais espécies de hominídeos através da “lei do mais forte”, de maneira violenta.

“Esta é a verdadeira surpresa, pois, durante muito tempo, os antropólogos pensaram que os Homo sapiens fossem os únicos responsáveis pela eliminação de todos os outros grupos de Homo na Terra. Eles não desapareceram porque éramos uma espécie agressiva que os expulsou, deslocou ou pressionou até a extinção. Pelo contrário”, destaca Hershkovitz. “Basicamente, o que aconteceu é que fomos assimilando essas pequenas populações nos grupos maiores de Homo sapiens e, pouco a pouco, eles desapareceram.”

O estudo também menciona que Skhūl 1° foi enterrado no que pode ser interpretado como um cemitério coletivo, com vários mortos sepultados com oferendas. Isso pode indicar um senso de pertencimento grupal para com esta criança, além de respeito com os infantes. “Ao contrário do paradigma dominante, as práticas mortuárias mais antigas conhecidas, envolvendo sepultamentos, não podem ser atribuídas exclusivamente ao Homo sapiens em relação ao Homo neanderthalensis”, diz o estudo.

“Por muitos anos, consideramos o cemitério uma invenção muito recente da cultura humana. O cemitério implica estratificação social, crença na vida após a morte, muitas coisas sobre a cultura humana, sua natureza, suas crenças, sua psicologia”, acrescenta Hershkovitz. “E, aqui, precisamos reconhecer: nós já tínhamos isso 140 mil anos atrás.”

(POR ÉRIC MOREIRA)