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Vera Moraes

A música “Identidade”, de Jorge Aragão, se estrutura em uma crítica social e representa um manifesto contra o racismo e de afirmação da identidade do povo negro brasileiro.

Lançada no ano de 1992, no álbum “Chorando Estrelas”, pela gravadora Som Livre, a música surgiu de um caso real de racismo vivido no Brasil pelo cantor nos anos 80/90. Esse episódio marcou o artista e o levou a refletir sobre o preconceito racial no Brasil e a se posicionar por meio da música.

Aragão transformou a experiência em uma denúncia poética, em que confronta a hipocrisia social a partir da ideia de que negro aceitável é aquele que se afasta de sua própria identidade.

Jorge Aragão da Cruz, nascido em 1º de março de 1949, natural do Rio de Janeiro, é um artista brasileiro-negro, cantor, compositor e multi-instrumentista, e suas obras são marcadas pelo lirismo e melodia. É também considerado o “poeta do samba”, que possui inúmeros sucessos gravados solos ou com outros artistas de representatividade no universo da música brasileira MPB, Samba, Partido-alto e Pagode, como Beth Carvalho, Martinho da Vila, Almir Guineto, Dona Ivone Lara, Alcione, Zeca Pagodinho e outros.

O contexto histórico e social da música reflete o racismo cotidiano e cordial brasileiro, que valoriza características brancas como superiores e rebaixa indivíduos negros por sua cor e atributos que retratam suas origens étnicas e sociais.

A canção denuncia o racismo estrutural existente no Brasil. Utiliza o elevador como uma metáfora da segregação racial, tendo-o como um símbolo clássico da exclusão social. Além disso, critica a ideia de que um negro só é digno de admiração se adotar características vistas como brancas. É uma crítica social que envolve questões profundas como o racismo e as desigualdades existentes no Brasil, o tratamento dispensado às pessoas negras em todos os espaços da sociedade, a violência disfarçada de afeto, como na frase “preto de alma branca”, direcionada aos negros na forma de elogio.

No trecho da música em que se afirma que “quem cede a vez não quer vitória” e a crítica ao “preto de alma branca” desmascara a ideia de elogio, que, na verdade, reforça a lógica de que ser negro é algo negativo, sugerindo que um negro “aceitável” é aquele que se comporta de forma branca. O artista recusa essa ideia ao afirmar a importância de se manter fiel à própria identidade.

Em versos como “somos herança da memória, temos a cor da noite e filhos de todo açoite”, a música faz referência à ancestralidade, à história do povo negro e à luta contra a escravidão, servindo de reflexão sobre a importância da preservação da cultura e identidade negra.

A letra da música não apresenta uma estrutura rígida e linear, mas uma configuração que flui como um samba-enredo, interpolando entre a narrativa e o refrão, tendo como personagem principal o próprio eu lírico, a voz que canta a narrativa. Apresenta figuras de linguagem como metáfora, antítese e metonímia, que não servem apenas como meros recursos estilísticos, mas como ferramentas essenciais para denunciar o racismo velado e cotidiano no Brasil. A canção é considerada uma obra-prima, indo além da gramática e da literatura, dialogando com a história e sociologia e contemplando a literatura afro-brasileira.

A análise literária da letra dessa música é um exercício fundamental de letramento racial. Recomenda-se a sua inclusão nas atividades pedagógicas do Ensino Básico da Rede de Educação, como forma de atender ao que estabelecem as Leis n. º 10639/2003 e 11645/2008, que tratam da obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e Afro-brasileira, pois a Literatura Negra é um importante instrumento na compreensão da construção da identidade do povo brasileiro.

Em síntese, a música representa um manifesto antirracista, que nasce da experiência real do artista, que, por meio dela, se posiciona contra o racismo e a negação da identidade negra, denunciando a discriminação e a tentativa de apagamento da cultura afro-brasileira, ao mesmo tempo em que reafirma o orgulho e resistência do povo negro, destacando sua ancestralidade e história.

Vera Moraes – Mulher Negra, Servidora Pública, Professora antirracistas – Licenciada em Letras com habilitação em Língua e Literatura de Língua Portuguesa e Espanhola pela UNEMAT.

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