Mesmo diante de incêndios recorrentes, longos períodos de seca e mudanças radicais no ambiente, os primeiros hominíneos (primatas ancestrais dos humanos) do Quênia mantiveram a mesma tecnologia de ferramentas de pedra por cerca de 300 mil anos. Lâminas eram feitas com calcedônia, rocha rara e ideal para itens afiados, e mostram escolha intencional e habilidade técnica.
É isso o que mostra um estudo internacional publicado na Nature Communications, que identifica no sítio arqueológico Namorotukunan, no noroeste do país, um dos registros mais longos e antigos da chamada tecnologia Olduvaiense, datada de 2,75 a 2,44 milhões de anos atrás.
As ferramentas — afiadas com precisão e usadas para cortar carne e vegetais — revelam uma impressionante consistência técnica entre gerações. Para os autores, isso indica que o domínio do corte e a transmissão de conhecimento já eram práticas consolidadas há quase três milhões de anos.
A escolha sistemática desse material indica conhecimento técnico e geológico refinado, mostrando que esses grupos sabiam identificar e selecionar as melhores pedras para obter lâminas mais precisas e duráveis. Essa seleção criteriosa revela não apenas habilidade prática, mas também planejamento e transmissão de conhecimento entre gerações, explica Dan V. Palcu Rolier, autor correspondente do estudo, ligado ao Instituto de Geociências da USP, ao GeoEcoMar (Romênia) e à Universidade de Utrecht (Holanda).
A equipe chegou às novas datas combinando métodos geológicos: análise de cinzas vulcânicas, assinaturas químicas das rochas e variações magnéticas registradas nos sedimentos. Esses indicadores permitiram reconstituir o ambiente do Plioceno, um período em que o vale do Turkana passou de planície úmida e fértil a um cenário árido e instável.
Durante essas transformações, os fabricantes das ferramentas se adaptaram, mas sem abandonar sua tradição técnica. “Namorotukunan oferece uma janela rara para um mundo em transformação — rios que mudavam de curso, incêndios se alastrando, a aridez se instalando — e as ferramentas, inabaláveis. Por cerca de 300 mil anos, o mesmo ofício persistiu. Talvez aí estejam as raízes de um dos nossos hábitos mais antigos: usar tecnologia para nos equilibrar diante da mudança”, afirma Rolier.
As evidências também sugerem um marco evolutivo importante: o uso de ferramentas para ampliar a dieta, incluindo carne e medula óssea, conferiu aos hominíneos uma vantagem de sobrevivência em tempos de instabilidade climática. “O registro fóssil das plantas conta uma história incrível: a paisagem passou de pântanos exuberantes a campos secos varridos pelo fogo. À medida que a vegetação mudava, a confecção de ferramentas se mantinha firme. Isso é resiliência”, comenta Rahab Kinyanjui, do Museu Nacional do Quênia, também autor do trabalho.
O estudo foi conduzido por pesquisadores de instituições do Quênia, Etiópia, Estados Unidos, Brasil, Alemanha, Índia, Holanda, Portugal, Romênia, Espanha, África do Sul e Reino Unido. No Brasil, o trabalho contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
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(Por Agência Bori)

