Um estudo publicado na revista Nature na última quarta-feira (5) propõe uma explicação preenche uma lacuna significativa no mapa genético das antigas migrações humanas. O trabalho revelou a existência de uma misteriosa população que viveu por milênios nas colinas e planícies do centro da Argentina, região até então ausente dos estudos genéticos da América do Sul.
A pesquisa envolveu uma ampla colaboração entre geneticistas, arqueólogos e curadores de museus argentinos. A equipe analisou restos humanos preservados em coleções arqueológicas e conseguiu extrair e sequenciar o DNA de 238 indivíduos que viveram na região nos últimos 10 mil anos.
O resultado surpreendeu: os cientistas identificaram uma linhagem genética completamente nova, que permaneceu estável por milênios. “Esta é uma parte importante da história do continente que não conhecíamos”, afirmou Javier Maravall-López, da Universidade Harvard, para a Science.
Ponto cego no mapa genético
Os primeiros seres humanos chegaram ao centro argentino há mais de 12 mil anos, quando quase todos os outros lugares do planeta já estavam ocupados. Mesmo com tantos milênios, a genética antiga da região permaneceu desconhecida até agora.
“A Argentina central é uma grande área que não foi amostrada e estava sub-representada”, explicou Rodrigo Nores, do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica da Argentina (CONICET). “Nossa grande questão era: dada a sua localização no meio dessas três populações, as pessoas que ali viviam eram uma mistura dessas ancestralidades ou não?”.
As análises genéticas anteriores da América do Sul identificaram três grandes linhagens: as centradas nos Andes Centrais, na Amazônia e na Patagônia. O novo estudo, no entanto, revelou um quarto grupo, uma população até então desconhecida que permaneceu isolada na região por cerca de 8.500 anos.
Uma linhagem resiliente
Os genomas antigos, combinados com as evidências arqueológicas, sugerem que essa população resistiu a grandes transformações culturais, inovações tecnológicas e até períodos de estresse ambiental. Apesar de estar cercada por outras civilizações sul-americanas, ela se misturou com pessoas de fora apenas nas bordas de seu território.
Ainda não se sabe por que esse grupo se manteve isolado por tanto tempo. Não havia barreiras geográficas significativas – o centro da Argentina é uma imensa planície –, o que torna o isolamento genético intrigante. Mesmo assim, a linhagem demonstrou notável continuidade: muitos argentinos modernos compartilham parte dessa ancestralidade.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_fde5cd494fb04473a83fa5fd57ad4542/internal_photos/bs/2025/T/G/0MzbdQQGuYFLAsMnViow/20251105-on-peopling-s-america-secondary.jpg)
Um episódio de seca extrema, entre 6.000 e 4.000 anos atrás, tampouco pareceu afetar a sobrevivência do grupo. O padrão observado difere do que se vê em outras partes do mundo, como Europa, Ásia e África, onde mudanças culturais e linguísticas costumam coincidir com substituições populacionais.
“Nesta região, há uma diversidade de línguas e de mudanças culturais, e observamos interações com outros grupos nas evidências arqueológicas. Mas a população é a mesma”, acrescentou Nores. Essa continuidade sugere que as pessoas do centro argentino permaneceram no mesmo local, apenas adaptando seus modos de vida ao longo do tempo.
(Re)desenhando a história das migrações
Os dados também refutam hipóteses antigas sobre grandes migrações vindas da Amazônia para o centro da Argentina há cerca de 1.300 anos.
Mais do que responder perguntas regionais, o estudo lança luz sobre as próprias origens das populações americanas. As amostras incluem o DNA de uma mulher que viveu há 10 mil anos – poucos milênios depois das primeiras evidências conhecidas de ocupação humana na região. Seu material genético mostrou-se mais próximo ao de antigos povos do Cone Sul do que ao de populações do norte da América do Sul, como as do Peru e do Brasil.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_fde5cd494fb04473a83fa5fd57ad4542/internal_photos/bs/2025/H/W/HCfQjYQVyHl3CdrK3Kww/dsc-0528.jpg)
“Ela faz parte de uma população primitiva que se ramifica em muitas outras linhagens”, explicou David Reich, da Universidade Harvard. “Isso sugere que um período inicial de expansão muito rápida por todo o continente foi seguido por um longo período de continuidade regional”.
O trabalho não apenas revela uma peça que faltava no quebra-cabeça genético da América do Sul, mas também redefine como se desenrolou a corrida pré-histórica para povoar os últimos territórios vazios do planeta.
(Por Júlia Sardinha)

