Clara Berto Neves Caporossi*
O cerne da discussão reside na interpretação do papel desempenhado pela recuperação judicial: enquanto instrumento de reestruturação econômico-financeira, destinado a preservar a empresa, sua função social e os interesses dos credores, conforme estabelece o artigo 47 da Lei 11.101/2005, face a exigência da comprovação da regularidade fiscal, conforme disposto no artigo 57 do mesmo Diploma Legal.
Apesar de existir antes da vigência da Lei 14.112/2020, essa exigência vinha sendo mitigada há muito tempo devido aos obstáculos encontrados na preservação da empresa. Contudo, com o advento da mencionada lei, que trata da possibilidade de parcelamento dos créditos fiscais, a exigência de comprovação da regularidade fiscal ganhou força.
É necessário analisar que a situação econômica das empresas em crise, frequentemente sobrecarregadas com dívidas fiscais, reflete também a complexidade do sistema tributário nacional e as dificuldades práticas de cumprir as obrigações fiscais, especialmente durante o ápice da crise que antecede o pedido de Recuperação Judicial, mesmo com a possibilidade de parcelamento das pendências financeiras.
Nesse contexto, a exigência de certidões negativas não representa apenas um obstáculo, mas também uma ameaça potencial à viabilidade do processo de reestruturação.
Além disso, a recuperação judicial não impede o fisco de buscar a satisfação de seus créditos por meio de procedimentos específicos, como a execução fiscal, conforme estabelecido pelo artigo 6º, § 7º, da Lei 11.101/2005. Ou seja, apesar não se submeter aos efeitos da Recuperação Judicial e estar autorizado a cobrar o crédito de forma autônoma, a pendência tributária possui o condão impedir a concessão da Recuperação Judicial.
Portanto, a exigência da certidão negativa de débitos é considerada desproporcional, favorecendo o fisco em detrimento dos demais credores. Além disso, as possíveis consequências da não comprovação da regularidade fiscal não beneficiam o fisco quanto ao adimplemento do passivo fiscal.
Se a exigência levar à convolação da recuperação judicial em falência, isso prejudicaria tanto a empresa em crise quanto o fisco. A busca do fisco pela satisfação dos créditos seria comprometida, pois estaria sujeita a uma ordem de pagamento que frequentemente é preterida em relação aos créditos que têm preferência sobre os créditos fiscais.
Por outro lado, permitir a suspensão da concessão da recuperação judicial, condicionando-a à comprovação da regularidade fiscal, acarretaria prejuízos graves para todos os envolvidos. A empresa em recuperação não conseguiria concluir seu processo de soerguimento, tampouco efetivar o reperfilamento de seu passivo. O fisco igualmente não se beneficiaria, já que, com a manutenção da empresa em crise econômico-financeira, suas chances de receber os valores devidos seriam reduzidas a zero. Por fim, os credores concursais seriam os mais prejudicados, pois a suspensão da concessão da Recuperação Judicial suspenderia o cronograma de pagamento previsto no Plano de Recuperação Judicial.
Diante deste contexto, a flexibilização da referida exigência surge como uma medida a ser cuidadosamente ponderada à luz dos princípios e propósitos da Lei 11.101/2005, com o intuito de assegurar a preservação da empresa, a continuidade de suas operações econômicas e a salvaguarda dos interesses dos credores. Essa abordagem não só simplifica o processo de reestruturação, como também promove a robustez do ambiente empresarial.
*Clara Berto Neves Caporossi, especialista em Processo Civil, atua como advogada em processos de recuperação de empresas
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