A extinção do Parque Cristalino II, entre Novo Mundo e Alta Floresta, no Norte de Mato Grosso, pode abrir precedentes para a extinção de outras unidades de conservação, além de afetar na perda de biodiversidade e da barreira ecológica contra o desmatamento na Amazônia, avalia Edilene Fernandes do Amaral, consultora jurídica do Observatório Socioambiental de Mato Grosso (Observa-MT). A criação do parque tem voltado a ser discutida nas últimas semanas após uma decisão da Justiça extinguir a unidade.
“É abrir um precedente absurdo para a perda de muitas áreas, perder uma riqueza que ainda nem exploramos como humanidade. Muitas pesquisas mostram que ali [no Parque Cristalino II] há primatas, biodiversidade de plantas, insetos, todos os dias há descobertas novas. E quantas doenças podem ser curadas a partir desta biodiversidade? Não que a natureza dependa e viva só para isso, ela tem o direito de viver e estar lá independente de nos servir, mas se as pessoas não enxergam isso, podem pensar pelo menos que a nossa sobrevivência depende também da preservação desses espaços”, afirma Edilene, em entrevista para o RDTV.
O primeiro pedido de anulação da criação do Parque Cristalino II foi em 2011 e o assunto voltou à tona em 2022, quando houve uma primeira decisão acerca do assunto. Desde então, o processo tem causado polêmica, com defesa de ambientalistas e Ongs e ataques do próprio governador Mauro Mendes (União), que chegou a ironizar a criação de uma “vaquinha” para arrecadar dinheiro de outros países para “construir parques e salvar o mundo”, antes de adotar uma postura mais mediativa e buscar, junto ao Ministério Público Estadual (MPE), uma solução para garantir a preservação.
No início de maio, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso aceitou o pedido de anulação da criação do Parque Estadual, feito pela Sociedade Comercial do Triângulo Ltda, que mira o desenvolvimento de atividades econômicas inviabilizadas pela proteção à unidade de conservação.
Conforme analisa a advogada, o Cristalino está longe de ser um caso isolado em Mato Grosso.
“Ele é o caso que está com mais problemas, com maior risco de perda, e é o mais importante para a Amazônia, mas não é um assunto isolado nesses últimos anos. Temos, por exemplo, o caso do Parque Ricardo Franco, que tem uma série de problemas de ocupação legítima e ilegítima, abertura de áreas não autorizadas, e não tem do Estado uma ferramenta forte de combate e fiscalização”, cita.
“Acho que o Tribunal de Justiça se ateve a um formalismo excessivo pelo lado da criação do parque e deixou de se ater ao formalismo necessário. Quem está requerendo o pedido é uma empresa privada contra o Estado e essa ação não pode ter um efeito coletivo, só poderia gerar efeito entre as partes”
Edilene Fernandes
No caso do Ricardo Franco, em Vila Bela da Santíssima Trindade, no Sudoeste do Estado, uma série de fiscalização do Ministério Público Estadual (MPE) contra os proprietários gerou 50 ações civis públicas e agora é preciso achar uma saída. Outro caso citado pela especialista foi o Parque Serra de Santa Bárbara, entre Pontes e Lacerda e Porto Esperidião, também no Sudoeste de Mato Grosso, unidade que possui um dos mais ricos ecossistemas do Estado, abarcando áreas de transição entre a Amazônia.
“Tentaram ‘imitar’ o caso do Cristalino e pediram a nulidade da criação do Santa Bárbara por ausência de consulta. Tem também a Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt, que já voltou várias vezes em pauta com ações judiciais, então há uma insegurança jurídica. O governador mandou recentemente para a Assembleia Legislativa uma mudança na nossa Constituição visando impedir a criação de novos parques até que 80% dessas unidades de conservação estejam regulamentadas, e não sabemos quando isso vai acontecer”, pontua.
Para Edilene, há um excesso de formalismo pela Justiça e uma omissão do Estado.
“Acho que o Tribunal de Justiça se ateve a um formalismo excessivo pelo lado da criação do parque e deixou de se ater ao formalismo necessário. Quem está requerendo o pedido é uma empresa privada contra o Estado e essa ação não pode ter um efeito coletivo, só poderia gerar efeito entre as partes. Por outro lado, o que vemos é o Estado sendo omisso. Fica difícil até para a Justiça ter outra decisão, porque não tem o Estado defendendo seu ato”, critica.
Entraves
Em 2011, houve uma ação buscando a nulidade da criação do Parque Cristalino II pela Sociedade Triângulo, empresa privada que diz ter títulos lá dentro. Ela questiona a ausência de estudos técnicos e consulta pública.
A primeira decisão saiu em 2022, quando a Justiça reconheceu que não havia problemas jurídicos no parque, que a consulta no momento em que ele foi criado não era exigido pela lei, então não havia vícios. O TJ teve voto divergente e, com maioria, considerou a extinção do Parque Cristalino II. Sem recursos do Governo contra a decisão, o processo foi para trânsito em julgado, quando não cabe mais se discutir. Na época, a PGE emitiu para a Sema uma determinação de retirar essa unidade de conservação da base de dados da Sema.
O processo se arrastava e em agosto de 2022, o TJ decidiu em favor da Triângulo, especialmente, pela ausência de recursos processuais por parte do Governo de Mato Grosso, que perdeu prazos para recorrer e então, configurou-se trânsito em julgado. Por uma falha processual, o Ministério Público Estadual (MPE), que é parte da ação, não foi citado sobre a decisão e sobre os prazos de recurso. Com isso, o processo foi reaberto e o MP pôde tentar reverter a decisão ao apresentar um recurso de embargo de declaração, negado no dia 2 de maio pelo TJ.
“Acabamos tendo com tudo isso uma série de degradações acontecendo dentro do parque, que não aconteciam antes: grandes incêndios, abertura de áreas em larga escala. Mas com a decisão do TJ passou-se a ter uma sensação de que não existia mais parque e que podia entrar nele. Houve uma aceleração da degradação, mesmo com o recurso do MP”, disse Edilene.
O parque
Criado em 30 de maio de 2001 pelo Governo de Mato Grosso, o Parque Estadual Cristalino II, com 118 mil hectares, está localizado na Amazônia mato-grossense. Naquele ano, a unidade de conservação foi anexada ao Parque Estadual Cristalino I, criado em 2000, com 66,9 mil hectares. Ao todo, são 184,9 mil hectares de floresta amazônica primária que promovem a conservação da fauna e flora do sul da Amazônia brasileira.
Na região dos Parques Estaduais Cristalino I e II foram identificadas mais de 600 espécies de aves, sendo que 25 estão ameaçadas de extinção, 82 espécies de répteis, 60 de anfíbios, 98 de mamíferos, 2 mil de borboletas, 39 de peixes, além de mais de 1,4 mil espécies de plantas já catalogadas. Ao todo, são 41 espécies da fauna e flora ameaçadas de extinção e 38 espécies endêmicas.
(Rdnews)