O processo jurisdicional pode ser pensado como um campo de intervenção estatal para a solução dos conflitos. Se de um lado há o direito do jurisdicionado invocar o poder estatal diante de um conflito instituído, por outro, o Estado invoca para si a exclusividade de resolução a partir de normas pré-estabelecidas.

Neste ponto, o processo, ainda que de direito das partes, pertence ao Estado. Este assegura que seu modo constitucional de ser será garantido em um locus chamado processo. E é função — ou melhor poder-dever — do Estado a resolução dos conflitos por meio do exercício do poder jurisdicional nesse locus.

Muitos valores poderiam ser citados como base desse exercício, mas toma-se o da imparcialidade. Como destaca renomada doutrina, a imparcialidade,além de valor materializado pelo princípio do juiz natural, seria pressuposto da existência até mesmo da própria jurisdição.

Nessa lógica, o sistema jurisdicional como um todo é atravessado pelo valor da imparcialidade. Valor que implica na definição não apenas de quem presidirá o processo — como os magistrados, na maioria deles —, ou ainda dos demais auxiliares do juízo.

Microssistema falencial brasileiro

Se for pensando o microssistema falencial brasileiro, há ainda maiores justificativas para a intervenção estatal, por meio de um processo imbuído na imparcialidade, uma vez que o próprio legislador, ao prever a execução coletiva, tolhe direitos de credores individuais ao impedir o prosseguimento das execuções autônomas, impondo um regramento de partilha coletiva nos termos da LFR — como, por exemplo, a ordem de pagamento prevista nos artigos 83 e 84.

Nesse cenário, até mesmo aquele credor proativo, bem estruturado, possuindo o maior crédito, e que monitora a situação financeira desse devedor — e de certa forma se antecipa, na busca de seu direito inadimplido, propondo o processo de execução autônoma — não conseguirá satisfazer seu direito, devendo se sujeitar ao processo de falência.

O interesse desse credor mais “célere” não pode se sobrepor ao interesse dos demais credores, muito menos à finalidade do próprio processo. Logo, ainda que haja direitos dos credores, o processo não é deles — muito menos do maior credor. O processo pertence ao Estado, e seu modo de ser decorre das aspirações do próprio Estado.

E como bem apontado pela doutrina, o microssistema falencial esboça escolhas de política pública na forma de resolução do conflito coletivo, ante o reflexo mercadológico e social.

“Sem aprofundar necessariamente no tema dos vieses e dos demais elementos que impactam na tomada de decisão, a imparcialidade é o vetor que embasa a tomada de decisão na resolução dos conflitos pelo magistrado, seja nas decisões de forma ou de mérito”
Maior eficiência

Nesse ponto, o PL 03 de 2024, com a louvável intenção de apresentar alterações legislativas para uma maior eficiência do processo falimentar, propõe, dentre outros elementos, a figura de um gestor fiduciário. Em brevíssima síntese, o gestor fiduciário substituiria o Administrador Judicial no processo falimentar.

Na prática, dentro do referido processo, caberia ao gestor executar diversos atos que hoje, de uma maneira geral, cabem ao Administrador Judicial — ou caberia, se o projeto apenas previsse alteração da dinâmica processual. Na proposição, o gestor seria nomeado não pelo magistrado, mas pelos Credores por meio de uma Assembleia Geral de Credores (AGC).

Na exposição de motivos, justificou-se essa escolha para aumentar a participação dos credores no processo falimentar, e de dar maior celeridade ao citado processo. Feito esses breves apontamentos, é prudente destacar, inicialmente, que tanto o projeto, quando a exposição de motivos, não atribuem ao Administrador Judicial a culpa pela morosidade do processo.

Se essa culpa realmente existisse, ela seria apontada e justificada. Mas não houve esse apontamento. E pode-se também afirmar que tal culpa inexiste. Assim sendo, não caberia a “penitência” da substituição de tal agente por ser o processo falimentar moroso.

Dessa forma, qualquer nova função — ou mudança na dinâmica processual —, que implique alteração no sistema procedimental falimentar, é plenamente atribuível à competência do Administrador Judicial, na sua função de longa manus do magistrado.

Inobstante isso, tomando a justificativa apresentada na exposição de motivos, de que a alteração implicaria maior participação dos credores, é possível afirmar que ela não se sustentaria, salvo melhor juízo, por violação direta da imparcialidade.

E isso, porque, como dito, a resolução dos conflitos objeto de um processo falimentar implicam o controle do Estado. No controle por meio de um processo jurisdicional, presidido por um juiz togado e imparcial. Obviamente que este, na administração do conflito, necessita de auxiliares.

Parcialidade

Sem aprofundar necessariamente no tema dos vieses e dos demais elementos que impactam na tomada de decisão, a imparcialidade é o vetor que embasa a tomada de decisão na resolução dos conflitos pelo magistrado, seja nas decisões de forma ou de mérito, seja na decisão que nomeia o agente que atuará como seu auxiliar. Pois, como dito, ele será a extensão das próprias “mãos” do magistrado.

Ou seja, para que seja assegurada a imparcialidade como valor, a nomeação do auxiliar deverá partir de um sujeito imparcial (juiz togado), na intenção de nomear outro agente imparcial. Não apenas o sujeito deve ser imparcial. Suas escolhas também. E não há possibilidade de imparcialidade, na escolha do agente, se ela for tomada por um sujeito parcial.

Do contrário, como previsto no PL 03/24, a parcialidade dos credores, ainda que em sua maioria apurada por meio de uma AGC, criaria um campo frutífero para a contaminação do locus denominado processo, por conflito de interesses, ferindo a imparcialidade que deve atravessar todo o processo como o falimentar.

Nem mesmo a justificativa de que, com a escolha pelos credores, estes teriam uma maior participação justificaria tal alteração, uma vez que o processo pertence ao Estado.

Ademais, a efetiva participação dos credores foi preocupação precípua do legislador desde a promulgação da lei 11.101/05, aos quais foi oportunizada atuação ativa nos processos de reestruturação e falencial, por meio de constituição de um comitê formado por três credores, contudo, figura pouco vista na prática. Isto é, o credor detém ampla participação no aspecto material (decide pela aprovação ou não do plano de reestruturação), assim como no aspecto processual, ao lhe ser permitido acompanhar todas as fases e atos por meio do Comitê de Credores.

Ou seja, o processo de falência não deve atender apenas aos interesses dos credores, mas sim aos interesses do próprio processo revestido de cunho social (artigo 47, LFR), que é a resolução do conflito coletivo por meio da observância de regras pré-estabelecidas que refletem o modelo constitucional de processo.

E a imparcialidade que embasa o sistema condiciona não apenas a existência de um juiz togado,mas a escolha por um sujeito imparcial, para que possa agir como o seu longa manus. Entender o contrário, além de ferir diretamente a imparcialidade, será permitir até mesmo aquela antiga hipótese de satisfação de um credor — célere, ou que tenha sido mais proativo —, em detrimento dos demais, pois será o maior credor quem determinará a escolha do agente — agente este que estará, ainda que indiretamente, ligado a esse credor, na possível busca de seus interesses individuais em detrimento dos demais.

*Aline Barini Néspoli é advogada e administradora judicial

Escrito com:

Breno Pinto de Miranda – advogado e administrador judicial

Luiz Alexandre Cristaldo – economista e administrador judicial

Rodrigo D’Orio – advogado e administrador judicial

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