O indígena Aruká Juma tinha entre 86 e 90 anos quando morreu de complicações do coronavírus, na UTI de um hospital de Porto Velho, capital de Rondônia, a 120 quilômetros de estrada e a duas horas de barco de sua aldeia. Sua morte, assim como as 1.150 registradas naquele dia em todo o Brasil, foi uma tragédia para seus parentes. Mas Aruká era também o último homem do povo Juma, memória viva de saberes ancestrais e sobrevivente de um massacre para exterminar seu povo. As três filhas que deixa são as últimas de uma etnia que no século XVIII tinha entre 12.000 e 15.000 membros.
Uma insuficiência respiratória aguda associada a uma infecção levou o idoso, segundo o jornal digital Amazônia Real. Na juventude, ele e seis outros Jumas sobreviveram a um massacre encomendado por comerciantes interessados na borracha e nas castanhas de suas terras, segundo detalhadas informações do Instituto Socioambiental sobre cada uma das centenas de etnias do Brasil. Cerca de 60 indígenas morreram em 1964, na última tentativa de extermínio em massa sofrida por esse povo, contatado pela primeira vez em meados do século XX. Integrantes do grupo de extermínio contratados pelos comerciantes naquele tempo relataram atirar nos Juma “como se atirassem em macacos.” Em 1930, um enviado das autoridades descrevia os Juma e os povos do entorno assim: “Conhecemos nove grupos, todos inimigos entre si, fazendo guerra e cometendo as piores crueldades com suas vítimas.”
O caso de Aruká ilustra como a pandemia atinge indígenas que vivem em aldeias no Brasil, o segundo país onde o coronavírus causou mais estragos. Três números resumem o drama nacional: 243.457 mortos, mais de 10 milhões de infecções e uma taxa de desemprego de 14%. Entre os indígenas que vivem em aldeias ―uma pequena minoria especialmente vulnerável que habita um vastíssimo território―, a covid-19 matou 567 pessoas. A vida desse Juma também oferece um olhar sobre a história dessas comunidades dizimadas desde a colonização portuguesa e que são essenciais para a conservação da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo. Fundamentais, portanto, para deter a mudança climática.
O antropólogo Edmundo Peggion conheceu o último Juma nos anos noventa. “Aruká era o último homem Juma que tinha memória das maneiras de caçar, dos modos artesanais próprios de seu povo. Existe um consenso na região, entre os índios Kagwahiva, de sua importância para a memória coletiva”, explica o professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em entrevista por telefone. O Kagwahiva é o grupo linguístico ao qual pertencem os Juma. “Ele era reconhecido como um amóe, um título de respeito”, que significa avô em tupi-guarani.
O coronavírus e Jair Bolsonaro ―um presidente antivacina, que despreza a gravidade da pandemia e os direitos indígenas― se juntaram às ameaças clássicas aos nativos, como os garimpeiros e os madeireiros ilegais. As principais associações indígenas brasileiras culpam diretamente o Governo por sua morte: “Mais uma vez, o Governo brasileiro se comportou com um grau de omissão criminoso e de forma incompetente. O Governo o assassinou”, afirmam em um comunicado.
A epidemia se espalhou rapidamente pelos rios da Amazônia. E os invasores de terras são um foco de contágio. Embora a vacinação esteja chegando a aldeias indígenas remotas, existe desconfiança em relação aos profissionais de saúde. E a falta de vacinas ameaça a imunização em todo o Brasil. O Rio de Janeiro teve que interromper a vacinação na segunda-feira.
Aruká foi levado para um hospital em janeiro e intubado. É também um dos brasileiros que foi tratado com o que o Ministério da Saúde chama de tratamento precoce. Medicamentos como a cloroquina, cuja eficácia contra a covid-19 não foi comprovada cientificamente, foram transformados por Bolsonaro em política de Governo ―algo que seu Governo tenta apagar nas últimas semanas. A ponto de envolver as Forças Armadas na fabricação de milhões de comprimidos.
A morte do idoso indígena “é uma perda devastadora. A história de sua vida foi e continua sendo um símbolo da imensa luta que o povo Juma travou”, diz Edson Carvalho, da ONG Kanindé, em entrevista desde Porto Velho, a cidade onde Aruká morreu.
Ele será enterrado em sua aldeia, localizada na Terra Indígena Juma, ao sul do Estado do Amazonas, onde estava quando sentiu os primeiros sintomas em janeiro. Um lugar muito distante de qualquer cidade. A criação dessa reserva indígena de 38.000 hectares foi uma árdua batalha que durou anos. As autoridades não estavam convencidas de que aquele território com um punhado de habitantes merecia a proteção legal que impede a exploração de seus recursos.
Antes, no final dos anos noventa, os últimos Juma foram retirados de suas terras pelas autoridades. Aruká, suas três filhas, um cunhado e a esposa deste foram transferidos contra a vontade para os domínios dos Uru-eu-wau-wau, explica o antropólogo, que na época tinha estreito contato com os dois grupos. Lá as filhas se casaram com homens desse outro povo com quem os Juma compartilham a língua. Abandonar seu habitat “teve um impacto muito grande na vida de todos os Juma”, conta Peggion, que acrescenta que o casal mais velho morreu pouco depois da transferência. “Naqueles anos fora do seu território, Aruká ficou muito deprimido, tinha muita saudade do seu território”, diz o pesquisador.
Depois de travar outro duelo com as autoridades, este indígena conseguiu retornar às terras onde cresceu e que seus ancestrais povoaram por muitos séculos. Foi acompanhado pelas filhas (Jumas), os maridos delas (da etnia Uru-eu-wau-wau) e os filhos dos três casais. A ONG Kanindé afirma que, como neste caso a etnia é transmitida pelo pai, elas são as últimas da linhagem. A primogênita, Borehá, é a nova cacique do dizimado grupo.
Fiel à sua promessa de campanha, Bolsonaro não deu proteção legal a um único centímetro mais de terra indígena nos dois anos em que está na presidência. Os processos em andamento estão paralisados enquanto diminuem os fiscais na Amazônia e os órgãos que cuidam da proteção do meio ambiente e dos indígenas que o protegem há inúmeras gerações.