No coração dos Alpes italianos, uma encosta quase vertical de dolomita guarda um testemunho extraordinário da vida na Terra há mais de 200 milhões de anos. No Vale do Fraele, dentro do Parque Nacional do Stelvio, entre as cidades de Livigno e Bormio, milhares de pegadas de dinossauros foram identificadas em excelente estado de preservação, distribuídas ao longo de vários quilômetros, formando um dos mais extensos sítios de pegadas do mundo para o período Triássico.
Apelidado de “Triassic Park”, o sítio simboliza, segundo as autoridades regionais, um elo entre o passado profundo da Terra e o presente olímpico da região. “Às vésperas das Olimpíadas de Inverno [que acontecem exatamente nessa região, entre os dias 6 e 22 de fevereiro de 2026], a Lombardia recebe da história um presente extraordinário”, declara Attilio Fontana, presidente regional.
A descoberta ocorreu no dia 14 de setembro, durante uma excursão para fotografar cervos e aves de rapina, na qual o naturalista Elio Della Ferrera observou com binóculos uma sucessão de depressões incomuns em camadas rochosas quase verticais. Algumas atingiam até 40 cm de diâmetro e se organizavam em fileiras paralelas. Ao subir até a base do afloramento, ele confirmou a presença de centenas de pegadas fossilizadas, muitas delas com impressões de dedos e garras.
No dia seguinte, Della Ferrera contatou o paleontólogo Cristiano Dal Sasso, do Museu de História Natural de Milão, que reconheceu imediatamente, a partir das primeiras imagens, tratar-se de pegadas de dinossauros jamais registradas na região. “Depois de 35 anos de atividade, jamais imaginei me deparar com uma descoberta tão espetacular, justamente na região em que vivo”, afirma Dal Sasso, em comunicado compartilhado nesta semana.
Destaque entre os sítios icnofossilíferos
As análises conduzidas pelo Museu de História Natural de Milão, em colaboração com o MUSE de Trento e a Universidade de Milão, indicam que as pegadas estão preservadas na chamada Dolomia Principal, uma formação do Triássico Superior com cerca de 210 milhões de anos. Elas representam as primeiras pegadas de dinossauros já descobertas na Lombardia e as únicas localizadas ao norte da Linha Insubrica, uma das mais importantes falhas tectônicas dos Alpes.
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Estimativas iniciais, baseadas em levantamentos fotográficos e mapeamento por drones, apontam a existência de milhares de pegadas, com uma densidade excepcional – em certos pontos, entre quatro e seis marcas por metro quadrado.
As superfícies fossilíferas afloram em pelo menos sete cristas distintas, com cerca de 30 pontos já identificados ao longo de quase 5 km, entre as Cime di Plator e Cima Doscopa, em altitudes que variam de 2,4 a 2,8 km. As pegadas são, em sua maioria, alongadas e atribuídas a animais bípedes. Nos exemplares mais bem preservados, distinguem-se claramente pelo menos quatro dedos.
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Em alguns trechos, impressões menores e mais largas à frente das pegadas dos pés sugerem ainda que os animais tinham o hábito de parar e apoiar os seus membros anteriores no solo. Tais características apontam para dinossauros prossaurópodes, que foram grandes herbívoros de pescoço longo e cabeça pequena, considerados ancestrais dos saurópodes do Jurássico, como o brontossauro.
Por mais que não tenham sido localizados esqueletos completos, o provável “autor” das pegadas é provavelmente um animal semelhante ao Plateosaurus, cujos fósseis são abundantes na Alemanha e na Suíça. Do ponto de vista icnológico, as trilhas se aproximam do icnogênero Pseudotetrasauropus sp., mas não se descarta que representem uma icnoespécie até hoje desconhecida, que poderá receber um novo nome após estudos detalhados.
Comportamento animal preservado na rocha
Mais do que a dimensão do sítio, o que mais impressiona os cientistas é a quantidade de informações sobre o comportamento dos animais que ali circularam. As trilhas paralelas indicam deslocamentos coordenados de grandes rebanhos, enquanto agrupamentos circulares de pegadas sugerem comportamentos defensivos.
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A presença simultânea de pegadas grandes, médias e pequenas reforça a hipótese de manadas compostas por adultos e indivíduos jovens. “As caminhadas paralelas são provas evidentes de bandos em movimento sincronizado, e há também vestígios de comportamentos mais complexos, como grupos de animais reunidos em círculo, talvez para defesa”, afirma Cristiano Dal Sasso.
Quando os dinossauros cruzaram essa região, entre 227 e 205 milhões de anos atrás, o ambiente era radicalmente diferente do atual. As montanhas ainda não existiam, havia apenas vastas planícies de maré tropicais, associadas às margens rasas do oceano Tétis.
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As pegadas foram impressas em lamas calcárias finas, saturadas de água, cuja alta plasticidade permitiu a preservação de detalhes anatômicos excepcionais, como marcas de garras e até contraimpressões deixadas por sedimentos que recobriram as trilhas logo após sua formação. Segundo o icnólogo Fabio Massimo Petti, “a plasticidade desses finíssimos fanghi calcários, hoje transformados em rocha, permitiu conservar detalhes anatômicos verdadeiramente notáveis, como as impressões dos dedos e até das garras”.
Com o soterramento, a litificação e, milhões de anos depois, o soerguimento dos Alpes, essas camadas foram inclinadas até assumirem a posição quase vertical atual. A erosão recente voltou a expô-las, mas também representa uma ameaça à sua conservação. É justamente por isso que as instituições de pesquisa envolvidas planejam o uso intensivo de tecnologias de digitalização, fotogrametria e sensoriamento remoto, além de medidas formais de proteção legal do sítio.
Para o geólogo Fabrizio Berra, o complexo Plator–Doscopa oferece uma oportunidade científica inédita. “Como os estratos que contêm as pegadas são diversos e sobrepostos, temos uma oportunidade única de estudar a evolução dos animais e do ambiente ao longo do tempo, como se estivéssemos lendo as páginas de um livro de pedra”, afirma.
(Por Arthur Almeida)



