O termo “acordo”, em sua essência, dispensa o adjetivo “comum” para designar a vontade livre e convergente das partes. É acordo a “comunhão de ideias”, o “entendimento recíproco”, define o dicionário Houaiss. Há, contudo, mais do que uma simples redundância na expressão “comum acordo”, que passou a integrar o vocabulário do futebol brasileiro em 2021.

Há uma forma, cada vez mais comum, de driblar a regra que limita a troca de técnicos numa mesma competição.

Nas últimas semanas, o ge procurou todos os treinadores que deixaram os times que comandavam nas Séries A e B em “comum acordo”.

Brasileirão segue com muitas trocas de técnicos mesmo com nova regra

Doze concordaram em falar sobre os termos reais das suas saídas, a maioria em reserva. Cinco afirmaram que, na verdade, foram demitidos – incluindo Felipe Conceição, o primeiro a expor o problema. Revelaram que a formalização como “mútuo acordo” foi um pedido do clube, uma estratégia para fugir à limitação de substituições estabelecida pelo regulamento.

Uma história que começa na segunda rodada da Série B. A primeira demissão em comum acordo do Campeonato Brasileiro: de Rodrigo Chagas, do Vitória.

“O presidente foi sabido”

Rodrigo Chagas foi demitido do Vitória e procurado depois para firmar o "comum acordo" — Foto: Pietro Carpi / EC Vitória / Divulgação

Rodrigo Chagas foi demitido do Vitória e procurado depois para firmar o “comum acordo” — Foto: Pietro Carpi / EC Vitória / Divulgação

Rodrigo Chagas foi efetivado como técnico do time profissional do Vitória na reta final da Série B 2020 – só havia assumido de forma interina, até então. Era o quarto treinador a ocupar o posto no campeonato. Antes dele, estiveram no comando Bruno Pivetti (demitido), Eduardo Barroca (deixou o time para assumir o Botafogo na Série A) e Mazola Júnior (demitido).

Começava oficialmente a carreira de treinador profissional no mesmo clube que o revelou como lateral-direito, com o qual possuía uma forte identificação.

Começou bem, livrando o time do rebaixamento.

– Eu era funcionário do clube há quase cinco anos. Vinha fazendo um trabalho muito bom nas categorias de base, conseguindo títulos, revelando atletas, quando apareceu a oportunidade de assumir o clube. Primeiramente, fui chamado para substituir o treinador, falaram que era para contratar um novo. As coisas não andaram com ele (Mazola Júnior) e a torcida pediu a minha volta – lembra.

Voltei, e conseguimos livrar o clube da Série C. Fizemos um novo contrato, sendo de treinador profissional. Entendo que, naquele momento, o Vitória tinha que encerrar o meu vínculo como funcionário. Perguntei e disseram que não. Beleza.
— Rodrigo Chagas, ex-técnico do Vitória

Rodrigo Chagas iniciou a temporada 2021 como funcionário do clube e no cargo de treinador. Não durou muito no segundo. Foi demitido na segunda rodada da Série B, após a derrota para o Náutico, em casa, por 1 a 0. Ramon Menezes assumiu o comando do time em seu lugar.

Rodrigo Chagas deixou o Vitória.

Ocorre que, no início de agosto, quando a Série B estava na 15ª rodada, o clube baiano resolveu demitir Ramon. E surgiu o problema: com duas demissões na competição, não poderia contratar um terceiro treinador. O comando deveria ser exercido por um funcionário que estivesse há pelo menos seis meses no clube.

O Rubro-negro queria, contudo, contratar um substituto. Tinha conversas avançadas com Wagner Lopes, inclusive.

Um mês e meio, dois meses depois (da demissão), começaram a entrar em contato. Eles queriam mandar Ramon embora, mas precisavam fazer acordo comigo para trazer outro treinador. E eu disse: ‘Como vou fazer um acordo se vocês me mandaram embora?’
— Rodrigo Chagas, ex-técnico do Vitória

Chagas conta que a intenção do clube era registrar o rompimento do vínculo – dois meses depois – como sendo uma decisão por “mútuo acordo”, o que permitiria a contratação de outro técnico.

Eles acharam uma brecha para esse acordo. O Vitória não me tirou do BID (como treinador) e nem como funcionário do clube porque sabia que poderia precisar de mim. O presidente foi sabido. ‘Se eu precisar de mais um treinador, tenho Rodrigo aqui. Eu não perco essa troca’. Pensaram assim.
— Rodrigo Chagas, ex-técnico do Vitória

Apesar da demonstração de surpresa e indignação, Chagas aceitou a proposta.

Aí entrou o amor que eu tenho pelo clube. Eu não podia ver o Vitória naquela situação. Eu não queria fazer o acordo. Se eu tivesse em qualquer outro clube, talvez não tivesse feito, mas como foi no Vitória, o clube que me colocou como atleta para o Brasil e para o mundo, que me deu oportunidade para ser treinador profissional, eu fiz.
— Rodrigo Chagas, ex-técnico do Vitória

O que diz o Vitória

Procurado pelo ge, o Vitória informou que não se pronuncia sobre casos internos. Limitou-se, além disso, a afirmar que possui acordo com o técnico Rodrigo Chagas e vai cumpri-lo.

“Fui pego de surpresa”

Segunda-feira, 30 de agosto de 2021. Na cabeça de Ney Franco, seria uma reunião de rotina com o presidente e a diretoria de futebol do CSA. Apesar da derrota dois dias antes para o Sampaio Corrêa, por 2 a 0, pela 21ª da Série B, não cogitava ser demitido no encontro que abria a semana.

Ney Franco não esperava ser demitido do CSA — Foto: Ailton Cruz/Gazeta de Alagoas

Ney Franco não esperava ser demitido do CSA — Foto: Ailton Cruz/Gazeta de Alagoas

– Eu tinha um aproveitamento bom, com um trabalho bem realizado no CSA. A gente tinha feito quatro jogos seguidos com bons resultados. Depois, a gente teve dois resultados negativos dentro de casa, mas o planejamento era de continuar – destaca o técnico.

Planejamento dele. Na reunião, o técnico foi informado que estava fora dos planos do CSA. Comunicado seguido por um pedido: que a demissão fosse formalizada como uma rescisão em comum acordo, de modo a não impedir a contratação de outro técnico pelo clube no futuro.

Na realidade, eu fui até pego de surpresa. A demissão foi uma decisão do clube. Quando o diretor de futebol veio conversar comigo, ele me fez essa ponderação, a questão do comum acordo, porque o clube não poderia contratar outro treinador.
— Ney Franco, técnico

Antes de Ney Franco, o CSA havia realizado uma troca no comando, a saída de Bruno Pivetti – campeão estadual com a equipe, o treinador iniciou a Série B no Azulão e caiu após a derrota para o CRB, na nona rodada. Saída também formalizada como “mútuo acordo”. A demissão de Ney, portanto, não inviabilizaria uma nova contratação. Contudo, deixaria o time com direito a fazer só mais uma mudança.

Assim como o técnico do Vitória, Ney Franco aceitou a proposta. Assim como Chagas, argumenta que aceitou porque não queria prejudicar o clube.

No meu caso, eu não queria prejudicar o CSA. Então, assinei o termo de comum acordo, mais para beneficiar o clube e para que não tivesse nenhum tipo de desgaste com eles.
— Ney Franco, ex-técnico do CSA
Talvez eu esteja até trabalhando contra a classe, mas no momento que você está ali, você também precisa fazer os seus ajustes financeiros. E quando você está na mesa você discute tudo isso. Você tem um valor a receber do clube e, em alguns momentos, esse comum acordo facilita você receber.
— Ney Franco, ex-técnico do CSA

Ney Franco comandou o CSA em 12 jogos – cinco vitórias, dois empates e cinco derrotas.

O que diz o CSA

Procurado pelo ge, o clube alagoano também foi sucinto. Limitou-se a informar que a saída de Ney Franco ocorreu em comum acordo, assim como o acerto financeiro com o treinador. Acrescentou que “o clube mantém seus compromissos em dia e tem essa marca registrada na gestão desde 2015.”

“O problema maior está na regra”

A noite de quinta-feira foi marcada pelo reencontro dos protagonistas do caso que primeiro expôs a fragilidade da regra que tentava limitar a troca de técnicos no Campeonato Brasileiro. No Independência, em Belo Horizonte, o técnico Felipe Conceição, do Remo, enfrentou e venceu o Cruzeiro, clube que comandava no início desta Série B e que hoje tem como adversário também fora de campo.

Felipe Conceição, técnico do Remo — Foto: Samara Miranda/Ascom Remo

Felipe Conceição, técnico do Remo — Foto: Samara Miranda/Ascom Remo

A confusão começou na mesma época da saída de Rodrigo Chagas do Vitória. Conceição deixou o comando celeste após a eliminação para a Juazeirense, na terceira fase da Copa do Brasil – duelo que aconteceu entre a segunda e terceira rodadas da Série B.

Uma saída em comum acordo, afirmou o clube. O técnico desmentiu.

O caso veio à tona justamente quando o treinador acertou com a equipe paraense e não pôde realizar o registro na CBF. Isso porque ainda estava vinculado do Cruzeiro. Era preciso formalizar a rescisão. Segundo o treinador, o clube mineiro condicionou o registro da saída à concordância dele em assinar a rescisão como sendo em “comum acordo”.

O técnico não concordou e levou o caso à Câmara Nacional de Resolução e Disputas (CNRD). Mais recentemente, acionou o Cruzeiro na Justiça Trabalhista cobrando R$ 1,3 milhão pela rescisão do contrato – salários e multas.

Isso vai ser resolvido na Justiça. Faz parte do futebol. Já me posicionei quanto a isso. O que eu torço é para que o futebol seja cada vez melhor, com equipes mais fortes, com manutenção de equipes, de treinadores, que a gente também consiga olhar e manter um trabalho a médio e longo prazo.
— Felipe Conceição, técnico do Remo

Para Conceição, episódios como esse acontecem justamente pelas brechas deixadas pela norma.

– Na prática, a brecha que tem nessa nova regra, o acordo mútuo de clube e treinador… A gente está vendo que não funciona como deveria. Acho que o problema maior está na regra – opina, acrescentando que a limitação, para ser efetiva, deveria existir independentemente de como ocorreu a saída.

O ajuste necessário (na regra) é não ter essa brecha para o comum acordo. Qualquer troca, independentemente de acordo financeiro, se é demissão ou se é por justa causa, deveria contar. Tanto para o clube como para o treinador. Assim, os clubes teriam mais responsabilidade na escolha dos treinadores, e os treinadores também teriam uma responsabilidade maior na condução do trabalho.
— Felipe Conceição, técnico do Remo

O que diz o Cruzeiro

Procurado pelo ge, o Cruzeiro manifestou-se através de nota, na qual reafirmou a existência do comum acordo. Confira a íntegra:

“O Cruzeiro informa que, no dia 9 de junho de 2021, logo após a partida contra a Juazeirense, pela Copa do Brasil, o treinador Felipe Conceição se reuniu com a diretoria do Clube, no espaço reservado à comissão técnica no estádio Adauto Moraes, em Juazeiro/BA.

Na conversa, houve consenso entre as partes de que o ambiente não era dos melhores e, em comum acordo, se optou pela não continuidade do trabalho. Tanto que o técnico sequer compareceu ao vestiário para se despedir dos atletas, diante do clima desfavorável.

A diretoria do Cruzeiro, no momento da conversa com Conceição, estava representada por Sérgio Santos Rodrigues (presidente), Rodrigo Pastana (diretor de futebol) e Deivid (então diretor técnico).

Desde então, o Clube tem tentado costurar o acordo para viabilizar o pagamento ao profissional. No entanto, não tem recebido por parte do treinador uma sinalização concreta. Da mesma forma, o Cruzeiro reitera que continua disposto a viabilizar uma resolução da pendência o quanto antes, e que seja positiva para as duas partes.” (Globo Esporte)