Uma série recente de acontecimentos, acusações e contradições serviu para pôr lenha na fogueira de uma briga antiga: a do brasileiro Heine Allemagne para ser reconhecido pela Fifa como o inventor do spray do futebol. Trata-se de uma batalha antes travada por vias amigáveis, por meio de conversas e negociações, mas que desde 2017 foi entregue nas mãos da justiça brasileira. As informações são do Globo Esporte.
Heine, 49 anos, mineiro de Ituiutaba, acredita que a Fifa, sem alarde, tenha retirado do livro da regra do jogo a ferramenta inventada por ele – mesmo mantendo seu uso em competições oficiais. O spray é a composição espumosa utilizada há anos por árbitros para demarcações durante a partida, como o distanciamento da barreira e o local das cobranças de falta. “Se o livro é a bíblia do futebol, a Fifa o profanou”, acusa o brasileiro.
Desde 2018, primeiro ano em que ambas as versões (inglês e espanhol) do livro não mencionaram o spray, a Fifa organizou por exemplo a Copa do Mundo de futebol masculino na Rússia e de futebol feminino na França, o Mundial Sub-17 no Brasil, o Mundial Sub-20 na Polônia e duas edições do Mundial de Clubes. Em todas essas competições, a ferramenta foi utilizada pelos árbitros.
Por meio do escritório de advocacia que o representa, Heine enviou no início da semana retrasada uma notificação ao Conselho da Fifa questionando os motivos do desaparecimento do item. O Conselho se reuniu na quinta (25/06), ocasião que serviu por exemplo para definir a sede da Copa do Mundo de futebol feminino em 2023. O brasileiro pediu uma resposta em até 48 horas após esse encontro.
O que baseia sua argumentação são as versões em espanhol do documento. Anexadas ao processo, elas mostram que o spray entrou pela primeira vez no livro na temporada 2016/17, foi mantido na temporada 2017/18, mas que dali em diante parou de aparecer. Nas circulares da International Football Association Board (IFAB), que sinalizam as mudanças na regra do futebol entre uma temporada e outra, não há menção à retirada da ferramenta. Pois bem, na sexta (26/06), um dia depois da reunião do Conselho, a Fifa respondeu:
“O spray de barreira jamais foi citado nas versões oficiais do documento na língua inglesa, que é a versão que deverá prevalecer em caso de qualquer dúvida”, disse a entidade.
O estatuto da Fifa prevê que qualquer decisão ou anúncio seja publicado nas quatro línguas oficiais: inglês, espanhol, francês e alemão. Mas, de fato, diz também que se houver algum contraste na tradução, “o texto em inglês deve prevalecer”. Para a defesa de Heine, que enviou na última sexta-feira sua contranotificação, a supressão do spray no documento não pode ser considerada um “conflito de interpretação”. Além disso, ela aponta uma contradição mais contundente: o spray foi citado, sim, na versão em inglês.
Como é possível ver na imagem abaixo, a ferramenta aparece na página 48 do livro em inglês da temporada 2016/17. Procurada pelo GloboEsporte.com, a Fifa, no entanto, reafirmou que “a versão das Regras do Jogo na língua inglesa jamais incluiu qualquer spray de barreira”.
Spray no livro de regras do jogo em inglês da temporada 2016/17 — Foto: Reprodução
Esse é apenas o capítulo mais recente de uma história de décadas. Na ação judicial que corre na 7ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, o brasileiro acusa o órgão máximo do futebol de má fé ao tê-lo impedido de negociar suas patentes com o mercado por meio de falsas promessas. E, claro, requer também o caminhão de dinheiro que viria junto a esse reconhecimento: ele calcula algo em torno de U$ 40 milhões (aproximadamente R$ 199 milhões), embora o valor indenizatório só venha a ser estipulado com precisão numa eventual liquidação de sentença.
O processo ainda aguarda o julgamento do mérito em primeira instância, mas a Spuni Comércio de Produtos Esportivos, empresa de Heine, conseguiu em dezembro de 2017 uma liminar que determinava a suspensão do uso do spray demarcador em competições organizadas por qualquer entidade no mundo. Uma vitória importante do brasileiro, mas que não alcançou resultados práticos porque o aerosol seguiu sendo utilizado. O Mundial da Rússia em 2018, por exemplo, aconteceu enquanto a liminar estava em vigor. Foi a segunda Copa do Mundo em que árbitros utilizaram a ferramenta. A primeira sem o consentimento do inventor.
A Fifa apelou para o Superior Tribunal de Justiça e conseguiu derrubar a liminar em outubro do ano passado alegando que o aerosol dos árbitros era imprescindível para a disputa do Mundial Sub-17, realizado no Brasil. Para a defesa do brasileiro, é aí que entra a principal contradição.
“A Fifa tem que dizer por que ela retirou o spray das regras do jogo sem nenhuma publicidade mesmo ela dizendo para tribunais superiores brasileiros que a ferramenta é fundamental”, completa Zanin.
E o caso ficou ainda mais complexo em agosto do ano passado, quando a Fifa ajuizou uma ação na esfera federal do Brasil em que pede a nulidade da patente pertencente a Heine. Como parte de sua argumentação, anexou o parecer de uma ex-diretora do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e fez com que o próprio instituto, 11 anos depois de conceder a patente, voltasse atrás e concordasse com a nulidade – conclusão que causa estranheza a um dos especialistas consultados pelo GloboEsporte.com:
– Me parece bem bizarra essa decisão do INPI, ainda mais por ter revisto a opinião depois de tanto tempo – opina Ari Magalhães, advogado do escritório MNIP e autor do livro “Manual de Redação de Patentes”.
Por sua vez, José Henrique Toledo Corrêa, sócio do escritório JHTC que é referência em marcas e patentes, lembra que a contestação de uma patente mesmo tanto tempo depois de sua concessão é uma possibilidade prevista em lei.
– Como a lei diz, a patente pode ser anulada em qualquer tempo, desde que se descubra o estado da técnica anterior ao pedido do registro. A Fifa conseguiu novos documentos anteriores ao ano de 2000. Tecnicamente é isso – acredita.
Procurado, o INPI reforçou que as patentes podem ser revistas a “qualquer momento durante sua vigência” e afirmou que, “diante dos elementos novos e das evidências existentes, após minuciosa avaliação técnica”, concluiu que a patente da Spuni “deveria ser declarada nula”. A exemplo do primeiro processo, esse também aguarda o resultado em primeira instância.
Da necessidade, surge a invenção
Heine Allemagne conta que assistia a um confronto entre Brasil e Argentina em 1999 quando Galvão Bueno, no momento em que o árbitro ajeitava a barreira desobediente, soltou um comentário que despertou sua atenção.
“Quero ver o cidadão que vai manter a barreira no lugar”, disse Galvão na transmissão.
Imediatamente, ele passou a se dedicar ao projeto que consistia na invenção de um spray, parecido com esses de barbear, mas cuja espuma desaparecesse minutos depois da aplicação. Desse modo, a ferramenta poderia ser utilizada pelos árbitros em marcações temporárias para definir, entre outras coisas, o espaço de 9m15 entre a barreira e a bola em uma cobrança de falta. Heine, que tem o segundo grau incompleto, estudou sobre o assunto, uniu esforços com um laboratório do Paraná e em outubro de 2000 deu entrada no pedido de patenteamento da “composição espumosa em spray para demarcar e limitar distâncias regulamentares nos esportes”.
Porém, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial só analisou o requerimento em 2008. Como resultado dessa análise, concluiu que “não havia anterioridades impeditivas” além de cinco pequenas exigências que deveriam ser corrigidas no texto da descrição do produto, como consta na imagem:
Pendência apontadas pelo INPI na patente do spray em 2008 — Foto: Reprodução
Por sua vez, a Spuni atendeu as exigências apontadas, e o INPI em junho de 2009 finalmente aprovou o pedido e concedeu a patente. Ao mesmo tempo em que aguardava o resultado da ação brasileira, com o objetivo de proteger sua invenção, Heine deu entrada no processo de patenteamento em dezenas de outros países – por sinal, vários deles aceitaram antes mesmo do Brasil.
De acordo com o levantamento mais recente da Dannemann Siemsen, departamento de patentes contratado por Heine, a Spuni é reconhecida como a inventora do spray do futebol em mais de 44 países, incluindo os principais do continente europeu, como Rússia, que recebeu a última Copa do Mundo, e Suíça, sede da Fifa. A imprecisão na quantidade se dá pelo fato de haver organizações que representam um conglomerado de países, como a Organização Africana de Propriedade Industrial Regional (ARIPO), que aceitou a patente brasileira em 2013.
— Foto: Infoesporte
Quatro anos atrás, em 2016, a patente adquirida pela Spuni sofreu seu primeiro processo de nulidade, cujos autores foram Vitor Hugo Xavier e Julio Diniz Fraguete Xavier. Na ocasião, o INPI alegou que “as argumentações apresentadas pelo requerente do Processo Administrativo de Nulidade não foram suficientes para invalidar os requisitos de patenteabilidade da referida patente” e sugeriu que ela fosse mantida.
- 2008 – Quando apontou as exigências que deveriam ser cumpridas.
- 2009 – Quando concedeu a patente.
- 2016 – Quando emitiu parecer favorável à manutenção da patente no primeiro processo de nulidade.
O spray no futebol brasileiro
Voltamos a 2000, ano em que o spray foi inventado. Com a ferramenta uma vez em mãos, era hora de propagá-la. Heine aproveitou certa vez a oportunidade em que um árbitro da Federação Mineira de Futebol esteve em Ituiutaba, na ocasião de uma partida oficial, para demonstrar a ferramenta a quem de fato iria se beneficiar com ela. Foi então que, segundo ele, um franzino e inexperiente Paulo César de Oliveira tornou-se o primeiro árbitro no mundo a testemunhar o funcionamento do aerosol.
– Eu chamei o árbitro, que era o Paulo César, ali na beira do campo mesmo e mostrei como funcionava o spray. Ele gostou bastante – recorda ele.
A Taça Belo Horizonte de 2000 foi a primeira competição oficial em que o spray foi utilizado. Diante do sucesso da novidade entre os árbitros, a federação mineira foi a responsável por levar o projeto para a CBF, que a princípio o testou nos dois módulos inferiores da Copa João Havelange. Já em 2002, por meio de uma circular assinada pelo então presidente da Comissão de Árbitros da entidade, Armando Marques, o uso da ferramenta passou a ser obrigatório em competições nacionais.
Heine explica que todos os sprays usados nessa fase de teste foram doados por ele com a condição de que a CBF iria apoiá-lo na tentativa de introduzir a ferramenta na regra do jogo. Em 2005, essa união ganhou o nome de Projeto Brasileiro Spray Demarcador.
– A CBF resolveu fazer esse teste. Ela não tem autonomia de fazer as leis do jogo, até porque ela faz parte da Fifa, é uma questão de hierarquia. Então eu consegui fazer com que ela apoiasse esse projeto para poder desenvolver isso internacionalmente e comecei a enviar em torno de 20 mil sprays para que ela usasse em todas as competições, nas 27 federações. Eu oferecia esse material, e ela me dava esse apoio – explica ele.
Com a ajuda da CBF, Heine passou a frequentar praticamente todos os congressos organizados pela Fifa com o objetivo de vender sua ideia. Foi inúmeras vezes a Paris, na França, e a Zurique, na Suíça. E visitou por exemplo países como Bahamas, Jordânia, Estados Unidos, Portugal, África do Sul, Hungria… sempre atrás dos dirigentes da maior entidade do futebol.
Heine conta que, nesse momento, sentiu falta de um lobby mais agressivo da CBF, já que se tratava afinal de uma invenção brasileira. Por outro lado, reconhece a importância do apoio da entidade então presidida por Ricardo Teixeira nos primeiros anos do projeto.
“Esse projeto aconteceu dentro da CBF como um projeto institucional. Então minha relação com a CBF é a melhor possível, sempre foi muito boa. O que eu quero dizer é que não havia com o spray o reconhecimento que se dá às demais invenções do futebol, como o VAR por exemplo”, pontua Heine.
– Apesar de ele ter sido uma unanimidade no mundo, de ter revolucionado o futebol, a CBF não deu projeção. Você nunca viu a CBF divulgando nada sobre isso. Diferentemente do que é o normal dentro do futebol, ele aconteceu meio no descrédito. “Ah, vamos ver no que vai dar”. Talvez isso explique o porquê da não projeção, talvez por isso a CBF manteve o apoio sempre nos bastidores. Porque a CBF sempre apoiou isso, mas pode ter tido medo de, lá fora, acharem que era uma bizarrice – acrescenta ele.
Nos dias de hoje, praticamente não há diálogo entre Heine e CBF. A entidade, por exemplo, nunca havia se pronunciado oficialmente sobre o imbróglio do brasileiro com a Fifa até fevereiro do ano passado, quando o diretor jurídico Carlos Eugênio Lopes prestou uma série de esclarecimentos num comunicado anexado pela Fifa no processo que corre na justiça. Nele, embora reconheça que implantou a ferramenta de maneira pioneira a partir de 2001 no Brasil, a CBF se colocou na posição de mera consumidora do produto – o que fortalece a tese de argumentação da Fifa, como é possível ver mais adiante nesta reportagem.
Declaração da CBF anexada pela Fifa no processo — Foto: Reprodução
Por fim, conclui que houve nova tentativa de compra do material “em meados de 2017”, mas que a Spuni, dessa vez, se recusou a vender. Em nenhum momento do comunicado, a CBF se refere a Heine como inventor da tecnologia ou algo do tipo.
Heine explica que, na última tentativa da CBF de adquirir os sprays, em 2017, já estava em vigor a liminar que ele havia conseguido na justiça para que o uso da ferramenta fosse suspenso em todas as competições.
– Eu poderia atender a CBF por uma questão de bom relacionamento, mas eu estava entrando na justiça. Já havia conseguido a liminar. Nessas últimas tentativas da CBF de adquirir o spray, eu dizia que não atenderia porque eu não iria contra a liminar que eu consegui – esclarece ele, antes de acrescentar que o problema é muito maior do que fornecer ou não o produto à CBF.
“Eu não fiz esse projeto para vender latinha. Não foi essa a conversa, não foi esse o prometido. Eu não criei uma latinha para o futebol, eu criei uma ferramenta. É muito diferente. Eu seria muito burro se só vendesse latinha de spray para o futebol”, afirma Heine.
Procurada, a CBF não respondeu os questionamentos até a publicação desta reportagem.
Julio Grondona, Fifa e o sócio argentino
O ano era 2003. Em uma dessas viagens a congressos para lá e para cá, movido pela necessidade de fazer seu projeto chegar até a Fifa, Heine Allemagne avistou uma roda de dirigentes no saguão do Hotel Le Bristol, em Paris. Estavam naquele bate-papo figurões como os ex-presidentes da Conmebol Nicolás Leoz e Eugenio Figueiredo, o ex-presidente da Uefa Ángel María Villar e o argentino Julio Humberto Grondona, que na ocasião era presidente da federação argentina e vice-presidente senior da Fifa.
Com uma lata do spray na mão, o brasileiro se meteu entre os cartolas e vendeu com afinco sua invenção, de modo que foi convidado a acompanhá-los até a área externa do hotel, onde havia um gramado para que pudesse demonstrar. Aplicou a espuma sobre a grama e, em menos de dois minutos, ela desapareceu. Ao que Grondona pegou o spray das mãos do brasileiro, ergueu sobre sua cabeça e afirmou:
“Esse é um projeto brilhante”
A ferramenta inventada pelo brasileiro ganhava, ali, seu principal padrinho dentro da Fifa.
Ainda assim, isso não significa que o projeto andou. Pelo contrário: seguiu estagnado nos anos subsequentes por motivos que iam desde o ceticismo do futebol europeu até a ausência de um suporte que ampliasse o lobby de Heine. Até que, em 2006, surgiu a notícia de que um spray bastante parecido e que servia para as mesmas funções estava sendo testado na Argentina – que não faz parte da lista dos mais de 44 países que reconhecem a patente da Spuni. Apontavam para um suposto inventor chamado Pablo Silva, jornalista.
– Em vez de brigar com a Argentina, como eu sempre tive um viés ideológico nesse projeto, eu fui até o Grondona em Buenos Aires e falei: “É a primeira vez que Brasil e Argentina podem jogar juntos em prol do futebol” – recorda Heine, que pediu a Grondona o contato de Pablo Silva para propôr uma sociedade.
– Eu liguei, conversei e o convenci de que o melhor era a gente se unir. Para que o projeto chegasse na Fifa com a força da CBF e da AFA. Ou seja, Brasil e Argentina jogando juntos – completa.
Essa decisão pavimentou o caminho até a Fifa porque o spray passou a ser um projeto com o carimbo de CBF e AFA, e não mais apenas um aerosol que Heine vendia em congressos ao redor do mundo. Enquanto a ferramenta continuava sendo utilizada a todo vapor nas competições brasileiras, a Argentina (que batizou o projeto de “Aerosol 9-15”) testou oficialmente pela primeira vez na segunda divisão em 2008. E, em 2009, no Clausura. Em maio daquele ano, as duas confederações escreveram à Fifa uma carta de recomendação da tecnologia, informando o resultado dos testes e sugerindo uma “atenção técnica” para o produto.
— Foto: Reprodução
Carta da CBF:
— Foto: Reprodução
No final de 2009, a Conmebol abraçou a causa e passou a usar o spray em suas competições, a princípio nas categorias de base. Em 2011, foi utilizado pela primeira vez tanto na Libertadores quanto na Copa América. Ao fim do torneio de seleções vencido pelo Uruguai, foi a vez de a entidade sul-americana enviar para a Fifa um extenso relatório de 52 páginas sobre os benefícios da nova tecnologia. O documento, com título “Avaliação do uso do 9-15 – Copa América 2011”, continha informações detalhadas tais quais a quantidade de vezes em que a demarcação se fez necessária em cada partida e a opinião dos 12 árbitros sobre ela.
Opinião dos árbitros da Copa América de 2011 sobre o uso do spray — Foto: Divulgação
Somente após o recebimento desse relatório foi que, em 2012, a IFAB finalmente aprovou o aerosol como regra do jogo. Na circular com data em 31 de maio de 2012, a entidade afirmou que “os membros concordaram que o uso do spray deve ser permitido, e que deve ser decisão de cada confederação implementá-lo ou não”. Ou seja, a partir daquele momento, a ferramenta poderia ser utilizada por qualquer país e de maneira oficial, não mais em caráter de teste.
Em 2013, a Fifa oficializou o spray como ferramenta dos árbitros na Copa do Mundo Sub-17, Sub-20 e no Mundial de Clubes. E, ao fim da competição vencida pelo Bayern de Munique no Marrocos, Blatter anunciou para todo o planeta que ia fazer o mesmo na Copa do Mundo de 2014, no Brasil. Heine se lembra como se fosse ontem:
– Foi ali que começou a sacanagem…
Heine Allemagne em reunião com Joseph Blatter. Presidente da Fifa atualmente cumpre pena de seis anos de exclusão do futebol por irregularidades na sua gestão — Foto: Arquivo Pessoal
– Eu estive em Zurique e falei com o Thierry (Weil, ex-diretor de marketing da Fifa). Perguntei: “Como vocês vão pôr o spray na Copa do Mundo?”. Ele: “Eu vou pôr e pronto”. Falei que beleza. Se eles iriam honrar com tudo o que estava sendo prometido, tudo bem.
A convite da Fifa, Heine e Pablo, na condição de sócios inventores do spray, passaram semanas no Rio de Janeiro auxiliando no treinamento dos 90 árbitros de 43 países diferentes para a Copa do Mundo. Os treinos se davam no Centro de Futebol Zico, no bairro de Vargem Grande, na Região Oeste da cidade. Todo o material utilizado naquele Mundial foi cedido pela Spuni. Segundo eles, na esperança de que o projeto ganhasse visibilidade e na condição de que a Fifa fosse adquirir as patentes num futuro próximo, como haviam lhes prometido em conversas tanto com dirigentes quanto com Grondona.
Uso do spray na partida entre Alemanha e Argélia, pelo Mundial 2014. Nota-se que o frasco teve a marca coberta — Foto: Andreas Gebert/picture alliance via Getty Images
Como se sabe, a competição se deu sem grandes polêmicas de arbitragem e se tornou o primeiro Mundial com o uso da espuma evanescente. A final entre Alemanha e Argentina no Maracanã, vencida pelos alemães com gol de Götze, aconteceu no dia 13 de julho. Duas semanas depois, no dia 30, Grondona morreu por causa de um aneurisma da aorta abdominal.
O polêmico programa de qualidade que deu início à briga
Heine conta que, antes mesmo da morte de Grondona, era evidente o comportamento estranho da entidade máxima do futebol, que pediu à dupla, por exemplo, que abrisse uma empresa no Panamá para dar sequência às negociações da compra da patente. Na primeira e única proposta feita pela entidade, em janeiro de 2014, foram oferecidos U$ 500 mil – valor 80 vezes menor que os U$ 40 milhões anteriormente cogitados.
A própria Fifa reconhece essa proposta em um trecho do processo, “admitindo, nesse contexto, até mesmo a possibilidade de adquirir as mencionadas patentes”.
Trecho da argumentação da Fifa no processo contra a Spuni — Foto: Reprodução
Em outro determinado momento, Rafael Salguero, ex-jogador guatemalco e membro do Comitê-Executivo da Fifa, se ofereceu para costurar conversas com a PPG Comex, empresa mexicana referência no mercado de tintas e parceira da Fifa, que estava disposta a adquirir os direitos da invenção. Salguero, no entanto, exigiu entre 3% e 5% do valor da venda. Heine e Pablo negaram a oferta, mas não antes de salvarem o e-mail com o que eles consideram ser um pedido de propina. Todos esses detalhes foram explicados numa reportagem de Fred Justo, em agosto de 2017, exibida pelo “Redação SporTV” (veja no vídeo abaixo).
Numa madrugada de agosto de 2015, Heine vasculhava a internet em busca de notícias sobre a Fifa quando deparou-se com a convocação de fornecedores do spray no mundo todo para participar da primeira reunião do programa de qualidade do produto que a Fifa estava organizando para o mês seguinte, em setembro, em Zurique. O brasileiro, que sequer havia sido convidado para o encontro, disse ter sido pego de surpresa.
– Primeiro eu não acreditei no que estava acontecendo, foi uma sensação de traição – diz ele, antes de completar:
– Eu não queria que eles fizessem o programa de qualidade, não com todo mundo. Desenvolver o meu produto para mim era um sonho, eu ficaria muito feliz. Mas aí eles vão lá e convocam todos os piratas.
Texto no site da Fifa em agosto de 2015 convocando os fornecedores do spray para a reunião do programa de qualidade — Foto: Reprodução
E-mail enviado por Heine para a Fifa pedindo esclarecimentos sobre o programa de qualidade — Foto: Reprodução
Quem lhe respondeu foi Sebastian Runge, coordenador da área de inovação e tecnologias da Fifa então responsável pelo programa. Sem se alongar, ele o convidou para a reunião: “E gentilmente peço para trazer uma amostra do seu produto”. Contrariado por ser convidado a participar da reunião de fornecedores do produto que ele patenteou 15 anos antes, Heine confirmou presença, mas sempre reforçando nas mensagens que gostaria de se reunir com Blatter, Jérôme Valcke (secretário-geral da Fifa) ou qualquer dirigente com quem pudesse tratar de uma vez por todas da venda de sua patente.
Em um dos e-mails, o brasileiro chegou a sugerir uma “proposta final”: U$ 15 milhões. Ele escreveu que, como prova do “quanto é justo”, estava disposto a aceitar um valor consideravelmente menor e disse que o plano era sair de Zurique “com uma posição definitiva da Fifa”. Esse e-mail não foi respondido.
– No encontro, eles indicaram, por exemplo, as características do spray que eu ensinei à Fifa, que era o tempo de visibilidade, como usar na chuva, o corante, que não pode prejudicar o gramado e o meio ambiente, que aplicar em pé ou mais agachado era só uma questão interna do tubo. Isso tudo eu já tinha explicado – conta ele.
Foto tirada por Heine antes do início da reunião do programa de qualidade do spray — Foto: Arquivo Pessoal
De acordo com o material de 25 páginas distribuído pela Fifa entre os fornecedores contendo um resumo das informações passadas na reunião, o plano era aprovar o spray no livro de regras do jogo (ou seja, tornar seu uso obrigatório no futebol) entre junho e julho de 2016. O cronograma também apontava para uma segunda reunião que seria realizada “no início de 2016”, mas que nunca aconteceu.
Naquele momento, com a prisão de uma dezena de dirigentes e os desdobramentos do Fifagate, Blatter já havia renunciado à presidência da Fifa e aguardava as eleições para deixar o cargo. Heine acredita que isso e também o fato de ter notificado a entidade diversas vezes quanto à imoralidade do projeto fizeram com que o programa fosse suspenso de maneira repentina.
Trecho da argumentação da Fifa sobre o programa de qualidade do spray — Foto: Reprodução
O que contraria, por exemplo, o conteúdo do e-mail enviado por Sebastian Runge a todos os participantes dois dias depois da reunião agradecendo pela presença e comemorando o “progresso” alcançado no encontro.
O fato é que Gianni Infantino assumiu a presidência da Fifa no lugar de Blatter em fevereiro de 2016. Heine pensou “que a nova diretoria ajudaria, que eles seriam justos e honestos”. E, por isso, enviou para o novo presidente um parecer com o resumo de todo o caso em que pedia para, enfim, ter sua patente reconhecida pela Fifa. Em maio, em resposta assinada pelo secretário-geral Markus Kattner, a entidade negou qualquer acusação de irregularidade e sugeriu que o caso fosse levado ao Comitê de Ética. O brasileiro, então, o fez, mas afirma que jamais recebeu retorno sobre sua denúncia. Restou a ele entrar na justiça.
Em julho de 2017, com relações rompidas de uma vez por todas com a Fifa, Heine chamou a atenção do mundo pela primeira vez ao enviar uma notificação para a entidade máxima e todas as confederações afiliadas exigindo a imediata suspensão do uso do spray. Em resposta, a Fifa disse desconhecer tanto ele quanto a patente que ele alegava possuir sobre o spray do futebol.
A Spuni, então, pôs a entidade na condição de ré na ação ajuizada no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro sob a alegação de falta de boa-fé objetiva e apropriação indevida de patente. O objetivo é provar, por meio de vias legais, que a Fifa agiu de maneira orquestrada no sentido de impedi-lo de negociar sua invenção com o mercado do exterior. Logo em dezembro daquele ano, obteve a liminar assinada pelo juiz Ricardo Lafayette, que concluiu em sua decisão que a entidade “estava apenas ganhando tempo para negociar com terceiros spray semelhante”.
Trecho da liminar emitida pelo juiz Ricardo Lafayette, que pediu a suspensão do uso do spray em todas as competições — Foto: Reprodução
Em uma de suas primeiras argumentações no processo, na tentativa de derrubar a decisão, a Fifa explicou que manteve o uso do spray com a liminar em vigor porque o caso não competia à jurisdição da corte judicial brasileira. Esclareceu que as empresas das quais compra os sprays atualmente possuem patentes igualmente legítimas. E acrescentou que jamais se apresentou à Spuni como possível compradora das patentes, mas como uma simples consumidora.
Trecho da argumentação da Fifa no pedido de efeito suspensivo sobre a liminar do TJ-RJ — Foto: Reprodução
Com essa linha de argumentação, a Fifa teve negado o pedido de efeito suspensivo sobre a liminar nas duas primeiras instâncias. Em outubro de 2019, a entidade recorreu novamente. Mas, dessa vez, foi ao Superior Tribunal de Justiça e com uma linha de defesa diferente: citou o Mundial Sub-17 que iria ser realizado no Brasil naquele mês e afirmou que o uso do spray era imprescindível para o sucesso da competição.
Trecho da argumentação usado pela Fifa para convencer STJ a suspender liminar — Foto: Reprodução
No dia 11 de outubro, 15 dias antes do início do Mundial Sub-17, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino concedeu o efeito suspensivo e derrubou a liminar em decisão monocrática. E, a partir daí, outra questão importante entra na história…
O spray desapareceu da regra do jogo
O spray como ferramenta da arbitragem foi aprovado pela IFAB em 2012, oficializando a permissão do uso da ferramenta por qualquer confederação que julgasse necessário. No entanto, ele só entrou no livro de regras (ou seja, tornou-se obrigatório) na temporada 2016-17 – como previa o programa de qualidade, por sinal. Sem surpresas, foi mantido para a temporada seguinte 17-18 (ao menos em espanhol, que foi a versão anexada pela Spuni no processo). Mas, a partir dali, a ferramenta desapareceu do livro.
O livro de regras do jogo da IFAB é divulgado antes do início da temporada europeia, normalmente em junho. Trata-se de um documento extenso, sempre com mais de 200 páginas, que esmiúça toda a regulamentação do esporte, o que é permitido e o que não é. Como se fosse mesmo um manual de instruções.
As mudanças no livro normalmente são anunciadas pela IFAB, que divulga em por volta de abril uma circular resumindo a efetividade das normas da temporada presente e pontuando o que será modificado para a temporada seguinte. Nos documento de 2017 e 2018, não há sequer uma menção à retirada da ferramenta.
– Nós levamos esse fato novo ao processo. A base de sustentação da Fifa é absolutamente contraditória com aquilo que já havia sustentado por ela no processo e contraditória com a supressão do spray nas regras do jogo. Ela omitiu isso do STJ – explica Cristiano Zanin, advogado representa a Spuni no processo.
“Essa explicação (sobre o sumiço do spray da regra) só a Fifa pode dar, eu não consigo identificar uma explicação razoável para isso”, acrescenta o advogado.
Regra do jogo 2016/17 (com o spray):
Spray nas regras do jogo em espanhol da temporada 2016/17 — Foto: Reprodução
Spray nas regras do jogo em espanhol da temporada 2017/18 — Foto: Reprodução
2018/19 (sem o spray):
Trecho do livro de regras do jogo da IFAB 2018/19 — Foto: Reprodução
2019/20 (sem o spray):
Trecho do livro de regras do jogo da IFAB 2019/20 — Foto: Reprodução
Trecho do livro de regras do jogo da IFAB 2020/21 — Foto: Reprodução
Aproveitando-se da ocasião da reunião do Conselho da Fifa no dia 25 do mês passado, Cristiano Zanin enviou a notificação informando aos membros sobre o desaparecimento do spray da regra do jogo em meio a uma ação judicial que tem justamente a ferramenta como objeto principal. No dia 26, a Fifa respondeu alegando que “o spray jamais foi citado nas versões na língua inglesa”.
Fifa diz que spray nunca foi citado na versão em inglês da regra do jogo — Foto: Reprodução
No entanto, como explicado no início da reportagem, a versão em inglês do documento da temporada 2016/17 cita, sim, o spray.
A Fifa também alegou em sua resposta que a IFAB, que é quem faz as regras do jogo, é um órgão independente. Por sua vez, a defesa do brasileiro destacou em sua contranotificação o fato de que a Fifa possui metade dos votos na Assembleia Geral da IFAB, que tem quatro dos oito membros indicados pela Fifa – as federações inglesa, escocesa, irlandesa e galesa apontam os ocupantes das outras quatro cadeiras.
Afinal, como provar?
Essa é a grande questão da história.
Como Heine Allemagne e Pablo Silva vão provar na justiça que a Fifa prometeu comprar a patente do spray por U$ 40 milhões e os impediu, por meio dessa promessa, de levar o projeto ao mercado? Segundo eles, as negociações que se arrastaram por anos se deram na maioria das vezes por encontros pessoais. Ou então por intermédio de Julio Grondona, que morreu em 2014. A entidade se faz valer da ausência de documentos (contratos, cartas…) que sustentem, de forma incontestável, que estava disposta a pagar esse montante pelo aerosol, e portanto argumenta no processo que era apenas uma consumidora do produto.
Trecho da argumentação da Fifa no processo — Foto: Reprodução
Portanto, como provar?
A defesa da Spuni aposta na narração de todo o enredo do projeto, da criação no ano de 2000 até a aprovação da Fifa em 2012, com inúmeros encontros de Heine e Pablo com dirigentes da entidade nesses anos, para provar que houve má fé. Para isso, anexou ao processo uma série de documentos, como por exemplo:
Fotos de reuniões com a Fifa
Há diversas imagens de encontros de Pablo e Heine com dirigentes da alta cúpula da Fifa nos últimos anos. Como essa abaixo em que Pablo (o primeiro à esquerda) e Heine (o terceiro da direita para a esquerda) aparecem ao lado de Thierry Weil (de óculos), ex-diretor de marketing da Fifa. Sobre a mesa, o spray com o logo da entidade.
Pablo (de gravata vermelha) e Heine (o terceiro da direita pra esquerda) ao lado de Thierry Weil (de óculos, ex-diretor de marketing da Fifa). Na mesa, o spray com logo da Fifa — Foto: Arquivo Pessoal
Pablo Silva gravou uma conversa que teve com Grondona em que o cartola, em nome da Fifa, diz que “temos que fazer uma proposta de compra”.
Miguel Scime é ex-chefe de arbitragem da federação argentina, fez parte da comissão de árbitros da Copa América e, portanto, tinha bastante abertura com Julio Grondona. Nesse depoimento gravado a pedido de Pablo Silva, Scime afirma com todas as letras que ouviu de Grondona que a Fifa tinha a intenção de comprar o projeto do spray. Inclusive, fala sobre o valor de U$ 40 milhões.
Um no Brasil e o outro na Argentina, os sócios se comunicaram bastante por e-mail durante esse tempo. Em uma dessas mensagens, em janeiro de 2014, por exemplo, o argentino informa ao brasileiro que conversou com Grondona e recebeu a informação de que a Fifa iria comprar. “Não podemos vender agora”, disse Pablo, referindo-se às patentes. Heine, que naquele momento procurava outras empresas interessadas, acredita que essa é uma das provas da “mão de ferro” da entidade máxima do futebol.
– Na verdade, você tem aí uma série de comportamentos contraditórios ao longo do tempo. Isso pra mim é o que evidencia que a Fifa age apenas para tentar protelar o exercício de um direito fundamental do Heine, que é o de ser reconhecido como inventor. Esses direitos recorrem das patentes que ele obteve no Brasil desde 2000, com validade em outros 40 e poucos países. Todos eles reconhecendo as características de uma invenção e dando a patente a ele. Mas nem o direito fundamental, que é o de ser reconhecido, a Fifa reconhece. Primeiro ela diz que não tinha relação, depois que era simplesmente uma consumidora, que não tem nada a ver com o spray. Depois ela diz que o spray não é importante, depois diz que é fundamental. Ela vai o tempo todo mudando as linhas, o que mostra que a defesa dela é extremamente frágil – explica.
Ao GloboEsporte.com, um porta-voz da Fifa disse que a entidade “está ciente das recentes declarações do Sr. Heine, que revelam uma clara tentativa de distorcer os fatos e constranger indevidamente a FIFA e seus representantes”. Afirmou, também, que “a FIFA refuta veementemente essas acusações e se reserva o direito de tomar todas as medidas legais cabíveis para impugnar as falsas e infundadas alegações do Sr. Heine”.
Fifa pede a nulidade da patente
Como um dos episódios mais recentes do imbróglio, a Fifa ajuizou na 25ª Vara Federal do Rio de Janeiro, em agosto do ano passado, uma ação pedindo a nulidade da patente que a Spuni obtém sobre o spray. O principal argumento no processo é a ausência de atividade inventiva. O artigo 13 da Lei de Propriedade Industrial diz que:
“A invenção é dotada de atividade inventiva sempre que, para um técnico no assunto, não decorra de maneira evidente ou óbvia do estado da técnica”.
O pedido de nulidade baseia-se em três documentos, chamados de D1, D2 e D3. D1 é um trecho de um catálogo estrangeiro de surfactantes de mais de 500 páginas publicado em 1993; D2 é a patente norte-americana de uma espuma que precisa ser lavada; enquanto D3 também se trata de uma patente dos Estados Unidos, mas de uma espuma com durabilidade de até 90 dias. A Fifa basicamente argumenta que o aerosol criado pela Spuni é uma combinação óbvia desses três elementos e que, portanto, não apresenta atividade inventiva.
Nesse processo, a Fifa é representada pelo escritório Gusmão & Labruine, que tem José Roberto Gusmão como um dos principais sócios. Advogado renomado no universo de patentes, Gusmão foi presidente do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) entre 1993 e 1994.
Junto ao pedido, a Fifa anexou o relatório de uma parecerista: Maria Margarida Rodrigues Mittelbach, que é engenheira química, advogada e também ex-funcionária do INPI. No documento, Maria reforça o argumento da autora da ação e aponta, entre outros motivos, supostas irregularidades técnicas na descrição da patente do spray, como porcentagens de composição, por exemplo.
A Spuni, que nesse processo é defendida pelo escritório MCLaw, pediu num primeiro momento que a Fifa juntasse o D1 em sua integralidade, ou seja, o livro de surfactantes inteiro, e não apenas algumas páginas. Para que, só então, pudesse traçar sua defesa.
– Esse catálogo é um catálogo com centenas de páginas e centenas de surfactantes. Eles selecionaram as páginas sem dizer o porquê, sem explicar o método. Só 10 páginas dessas 500 mais ou menos. Juntaram o documento em partes, como se fosse um Frankstein – explica um dos advogados do escritório, que preferiu não ser identificado.
No entanto, antes mesmo que a integralidade do documento fosse anexada, o INPI emitiu em fevereiro deste ano o seu parecer sobre o caso dando razão para a Fifa. O relatório assinado por dois pesquisadores do instituto, sob supervisão de uma supervisora-técnica, conclui que a patente concedida 11 anos atrás é, sim, nula.
Conclusão do parecer do INPI sobre nulidade da patente do spray da Spuni — Foto: Reprodução
– Isso nos causou muita estranheza porque, durante o processo de concessão de uma patente, a primeira coisa que o INPI tem a atribuição e o dever é de fazer exigências – explica o advogado da Spuni.
– Tudo bem, nosso cliente corrigiu as exigências, e o INPI concedeu a patente em 2009. Então são duas vezes que o INPI analisou a patente e foi favorável. E aí anos depois, em 2016, um terceiro tentou anular a patente por vias administrativas. E mais uma vez o INPI analisou e concordou que a patente era legal e válida. Agora, eles apresentam esse parecer opinando pela nulidade.
“No parecer, o INPI tem que analisar todos os documentos e chegar à conclusão dele. Veja bem, se a Fifa não apresentou o documento inteiro, como o INPI deu o parecer? É um absurdo, esse parecer tem que ser desentranhado dos autos”, opina ele.
Ao GloboEsporte.com, o INPI disse que “analisou a argumentação e os novos documentos apresentados pela Fifa” e afirmou que, “após minuciosa avaliação técnica, concluiu que a patente deveria ser declarada nula.” A reportagem consultou dois especialistas no assunto. Dono do escritório JHTC, referência em questões de marcas e patentes, José Henrique Toledo Corrêa explica que os processos de nulidade não são raros e podem ser apreciados mesmo anos depois da concessão da patente.
– A nossa Lei da Propriedade Industrial diz que toda patente poderá ser anulada a qualquer tempo caso se descubra que o estado da técnica antecede a invenção. Então, da data do pedido da patente em 2000 para trás, se já existia alguma coisa, a patente pode ser anulada em qualquer tempo. Mesmo que seja 10 anos depois da concessão da marca – explica ele, que também não acredita que o fato de o brasileiro ter patente reconhecida em mais de 40 países possa ter peso no processo:
– A lei de patente é semelhante no mundo todo. Eventualmente o examinador do pedido do brasileiro na ocasião pode não ter localizado o documento que provasse a nulidade daquela patente, que é o que a Fifa alega ter feito agora. Então ela foi concedida. Isso também pode ter acontecido nos outros países.
Por outro lado, Ari Magalhães, advogado e autor do livro “Manual de Redação de Patentes”, afirma que quanto mais elementos servirem de base para o pedido de nulidade e maior for o tempo de publicação entre eles, mais fraca é a tese do pedido. Por isso, estranhou a conclusão do INPI.
“Vou dar o exemplo da pólvora. A pólvora é a combinação de três elementos que todo mundo já conhecia: salitre, enxofre e carvão. Mas ninguém sabia que a mistura dos três resultaria no componente explosivo que mudou a história das guerras. Você não pode considerar óbvia a combinação desses três elementos”, conclui ele.
O advogado da Spuni acrescenta:
– A Fifa sustenta que a invenção era óbvia. Se era óbvia, por que a Fifa não inventou?
O processo de nulidade ainda aguarda julgamento do mérito em primeira instância. No entanto, no outro processo, que julga a falta de boa-fé objetiva e que está próximo de um resultado também em primeira instância, a Fifa pediu para que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro adiasse sua decisão alegando que não pode haver juízo sobre seu comportamento em negociações que envolvem uma patente nula.
Trecho da argumentação da Fifa no processo — Foto: Reprodução
– O meu sentimento é de quem está sendo usurpado. De alguém que fez algo extraordinário para o futebol e foi roubado pelo maior órgão do meio – conclui.
Heine Allemagne mostrando à imprensa o uso do spray no início dos anos 2000 — Foto: Arquivo Pessoal
(Globo Esporte)