A água é um bem que garante a vida, seja por meio da sua importância na produção de alimentos, seja na geração de energia e de riquezas, no desdobramento químico, no abastecimento público das cidades, na saúde por meio de sua influência no clima, na navegação, na higiene, além de garantir a preservação e a transformação dos reinos animal, vegetal e mineral.
No século XVIII a ingestão de água potável era observada de perto por médicos e cirurgiões, que consideravam, por exemplo, os perigos de: (…) estando suado, beber muita água fria (…) ou levantando-se de algum ato venéreo, que é ajuntamento com mulher, tendo então os poros abertos, e por isso perigosíssimo (…) ou acabando de fazer algum serviço (…) se lavar ou fartar de água fria(…).
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Em fins do século XVIII eram comuns as observações sobre o risco das águas dos rios serem más, para ingestão direta. De um lado, por processos naturais: As enxurradas das águas, que escorrem das serras das cabeceiras dos rios, arrastam consigo as diversas substâncias térreas, salinas e metálicas, de que abundam as mesmas terras. (…) e os que as bebem por costume logo que as tiram dos rios, sem esperar que assentassem nos potes, de um para outro dia, depõem no ventrículo, de cada vez que as bebe, um sedimento viciado, o qual obstruindo os orifícios dos pequenos vasos anuncia pelos clorosis à obstrução que todo mundo sabe, que é como um seminário de outras queixas em que degenera, como são as palpitações de coração, as cardialgias, a icterícia, a hidropisia, a cahexia etc. (…) Aqueles que mais cuidado têm da conservação da sua saúde, jamais bebem outra água, que não seja a que é tirada do meio do rio, onde a correnteza é mais rápida e onde pelo conseguinte não param as imundícies que param nas margens (…). Não contentes com esta precaução, os que são mais escrupulosos filtram a água por um pano fino, ou a purificam das impurezas mediante o alúmen, com que as precipitam para o fundo (…).
Mas, por outro lado, também os pesadelos continuavam em função da formação de ambientes urbanos, com o adensamento de população e de atividades como açougues, curtumes, fornos de cal, azougue usado em mineração ou fundição, sementes de algodão e cascas de arroz, ausência de esgotos, diário despejo de dejetos em córregos e rios e, enfim, lavagem de roupas, inclusive de doentes e banhos no rio, tudo isso contribuía para prejudicar a qualidade das águas potáveis e fluviais de Cuiabá. Quanto a surtos de doenças atingindo grande parte da população da vila e da cidade de Cuiabá, geralmente denominadas epidemias, aparentemente o que predominou foram afecções das vias respiratórias e disenterias nas estações de estio e das águas, bem como a importação de doenças, trazidas pelos que vinham por meio das monções do sul, seja pelo caminho de terra para Goiás, seja pelas monções do norte, porém estas com menor impacto. Isso durante o século XVIII. No século XIX os relatórios oficiais reiteram as doenças de secas/enchentes e importações, como os casos da varíola em 1867 e da cólera, em 1886/1887.
Em 1850, a Província tinha “felizmente sido preservada dessas epidemias”; em 1865 ocorreram disenterias na “estação seca”; entre 1881 e 1882, “alguns casos de varicela nesta capital”, “que não trouxeram conseqüências funestas” (mas “casos de diarréia também se deram e de preferência nas crianças, aonde fizeram algumas vítimas”); em 1884, “o estado sanitário é excelente em toda a Província devida, sem dúvida, ao seu bom clima”; em 1887, “pouco desenvolvimento teve a epidemia da cólera morbus (…) que invadiu a Província por Corumbá em princípios de dezembro do ano passado”; “na capital procedeu-anterior ao ano de 1790, algumas autoridades provinciais desejaram dotar a Vila de um sistema de abastecimento público de água potável por meio de um valo do córrego Motuca até o Jacé na Vila do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, porém, somente no ano de 1882, tal intento foi conseguido, na gestão do Presidente José Maria de Alencastro, exatamente em 30 de novembro, trazendo a água potável do rio Cuiabá para a região do 2º distrito, hoje bairro do Porto e para a parte central da cidade.
Das fontes de abastecimento de água de Cuiabá, a mais antiga, ou pelo menos aquela a que mais referência possui é o Chafariz do Rosário concluído em 1790, no Governo do Capitão General João de Albuquerque, possivelmente um sonho da população cuiabana conseguido sob pressão popular. Esse sonho ficou registrado nos Anais da Câmara da Vila Real, em relato referente ao ano de 1790: No ano de 1790 se irigu hu chafaris no largo que fica para cá da ponte do Rozario conduzindo-se ágoa para o mesmo bica denominada o arnesto e principiou a correr a mesma ágoa no chafaris no fim de agosto cuja obra he a mais útil, e bem comum do povo.
A manutenção de fontes públicas na Vila Real mostra existência, mesmo que deficiente de sistema de abastecimento público de água potável. Das fontes às casas, a água era transportada por escravos. Algumas residências tinham poços nos quintais. Tudo leva a crer que das águas do córrego Prainha não se bebia: “a presença de algum azougue (mercúrio) das lavagens do ouro, além de lixo, tornava perigosa sua água”. Aparentemente a prática de jogarem-se dejetos em córregos e outros locais dentro ou próximos do centro urbano era recorrente, – apesar das posturas e das ações da Câmara: “dejetos eram jogados nos córregos e em lugares impróprios”.
Essa não utilização das águas do Prainha para ingestão atravessou séculos. Em 1872, por exemplo, testemunhas juramentadas em processo judicial declararam ser prática comum, embora transgressiva, pessoas satisfazer necessidades físicas nas margens e no leito do Prainha. Como essas testemunhas, praticamente toda a população da cidade devia estar advertida sobre a contaminação das águas do Prainha. A recorrência das preocupações camarárias com a preservação da água potável manteve-se até fins do século XIX.
Em maio do ano seguinte (1881) o governo assinou contrato com os empresários João Frick e Carlos Zanotta. Era um contrato de 180 contos de réis, que o governo deveria pagar “em cinco prestações iguais”. Em novembro desse ano (1882) as obras do novo projeto foram concluídas. Para recebê-las oficialmente, o presidente da Província exigiu parecer técnico do engenheiro provincial, que foi assim redigido: O sistema público de abastecimento de água potável foi inaugurado em 30 de novembro de 1882. Só uma terça parte da população da cidade ficou beneficiada, com dois horários de distribuição: das 06h00min às 08h00min horas e das 17 às 20 horas, diariamente. Nos tempos atuais esse local é conhecido em Cuiabá com o nome de Museu do Morro da Caixa d´Água Velha.
Nesse mesmo mês o chefe do partido liberal em Cuiabá elogiou abertamente o novo sistema de abastecimento de água: A água jorra em quase todas as ruas; (…) obra gigantesca que fizeram os empresários. O largo do palácio foi transformado num belo jardim, com um majestoso chafariz que lhe serve de utilidade e adorno. (…) uma felicidade para nós, que lutávamos todos os anos com dificuldades imensas para obter uma das principais necessidades da vida: a água.
Portanto, em fins de 1882 teve início a implantação de um novo sistema de abastecimento de água potável, para pelo menos uma parte da cidade de Cuiabá, com canos de ferro introduzidos por baixo da terra, marcando o nascimento, na cidade, das águas ocultas, invisíveis, porém, sem tratamento.
*NEILA MARIA DE SOUZA BARRETO é jornalista, escritora, historiadora e Mestre em História. É membro da Academia Mato-Grossense de Letras (AML).
E-MAIL: neila.barreto@hotmail.com