Um sapateiro, segundo o historiador grego Plínio – o Velho – observando o retrato feito pelo célebre pintor Apeles notou uma imperfeição nas sandálias do personagem. Como prontamente o artista se dispôs a corrigi-la, lisonjeado, quis o sapateiro sugerir outros reparos na obra, mas foi advertido pelo pintor: “não vá o sapateiro além das sandálias”.

 

A lição do episódio é que convém somente levar em conta observações de especialistas. Entretanto, mesmo não sendo um deles, arrisco dar palpites que eventualmente desagradem a alguns “Apeles”.

 

Como esse aqui é um texto opinativo ouso ir além das “sandálias” na conclusão que, lá no final, junta os três fatos abaixo:

 

A – O estilo de música chamado “sertanejo universitário” reinou sozinho entre as dez músicas mais tocadas no Brasil no ano de 2019.

 

B – Dos dez livros mais vendidos no País, também no ano que terminou, todos são de autoajuda.

 

C – Nos últimos anos o neopentecostalismo atingiu um desenvolvimento nunca visto. Este aumento refletiu na população evangélica brasileira, que será maior que a católica em dez anos, garantem as projeções estatísticas.

 

Será que existe alguma relação entre a baixíssima procura por livros de ficção – romances, contos, crônicas, poesias – e o desinteresse pela na música popular brasileira de boa qualidade?

 

Há 30 anos lia-se Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Mario Quintana, Machado de Assis entre muitos outros autores nacionais. Também Thomas Mann, Jane Austen, Ayn Rand etc., nomes famosos da literatura mundial. Hoje todos estes autores estão longe do interesse da população, sendo substituídos por Mark Manson, Lucas Neto, Caio Carneiro com seus sugestivos “Arte de ligar o F*da-se” ou “Seja Foda”, títulos que, por si só, mostram a elegância da obra.

 

Os jovens que ouviam Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Jobim e as bandas de rock nacionais e estrangeiras hoje curtem Gustavo Lima, Zé Neto & Cristiano, Wesley Safadão e Marília Mendonça, sugerindo que no País a autoajuda prospera na literatura da mesma forma que o sertanejo universitário domina na música.

 

Por último vem a conclusão de um não especialista: junto com a música e a literatura parte da religião descambou para o grotesco. O neopentecostalismo, que cresce sem obstáculos, parece estabelecer com o Cristianismo – católicos e evangélicos –  a mesma relação do sertanejo com a MPB e da autoajuda com a ficção clássica.

 

Ele – o neopentecostalismo, deturpado por seus líderes gananciosos – substituiu toda liturgia dos cultos e missas pela compra e venda de um produto de consumo imediato, disponível em cada esquina. Esta mercadoria (curas, sucesso financeiro, salvação etc.) pode ser paga com boleto ou parcelada no cartão. Para alcançar  prosperidade e  saúde basta ao pobre fiel, convencido do bom negócio por pastores, bispos e obreiros, deixar 10% do minguado salário nas mãos dos vendedores de milagres e de bênçãos.

 

Eis no que se transformaram essas manifestações culturais brasileiras: religião de segunda, música de terceira e literatura de última.

RENATO DE PAIVA PEREIRA é empresário e escritor