Da elite cuiabana à pessoas em situação de rua. Esse é o cenário do entorno da praça do bairro do Porto, em Cuiabá. Na última edição do projeto social Caravana da Rua para Rua,o Porto, um dos locais mais antigos de Cuiabá, foi recebido com acolhimentopsicossocial, arte com elementos do Hip Hop, e uma roda de conversa, com transeuntes e pessoas em situação de rua,que fazem dali abrigo, e até mesmo um “condomínio” à beira do rio Cuiabá, com morada embaixo da ponte.
“Aqui no Porto, a gente que trabalha com essas pessoas, tem uma visão que costuma dizer assim: o que o Porto não acolhe o rio leva. Porque existem pessoas em estados terminais de vivência de sociedade, de uso de drogas e abandono familiar”, destaca a poeta Luciene Carvalho, que, além de presidente da Academia Mato-grossense de Letras, executa junto com o artista Mano Raul, a partir do Núcleo Hoje em rede com o Instituto Inca-Inclusão, Cidadania e Ação, o projeto social Caravana da Rua para Rua, que estará neste sábado (03.08), na praça atrás do Beco do Candeeiro, a partir das 11h30.
O Caravana da Rua Para Rua é um projeto Conveniado pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, por meio de emenda parlamentar do ex-deputado federal, Dr. Leonardo, atual Secretário do Escritório de Representação do Estado de Mato Grosso (Ermat), e tem o objetivo de despertar a esperança e levar uma melhor saída para a circunstância em que vivem as pessoas em situação de rua.
Um dos reflexos desta realidade apontada por Luciene é a daCleia Lina dos Reis, assim como se identificou a sorridente eamávelmoradora daquele local, conhecida pelos comerciantes e por muitos que passam ali pelo farol entre a avenida 15 de novembro e a Praça Luís de Albuquerque (Praça do Porto), que faz divisa entre Cuiabá e Várzea Grande, vizinha da Ponte Júlio Muller, a Ponte Velha. Cleia está nesta situação há 20 anos, como moradora de rua e usuária de drogas.
Cuiabana, do bairro Dom Aquino, da Aldeia,Cleia tem 43anos (nascida em 21 de fevereiro de 1981), é avó, tem quatro filhos, sendo duas gêmeas, de 21 anos, um rapaz de 19, e a caçula vai fazer 17. Estudou até a oitava série e o sonho é ter uma casa e ser detetive investigadora. Diz ser alcóolatra e usuária de crack, e que não consegue parar, mesmo tendo recebido uma certa ajuda da família para conseguir sair do vício: entre internação e moradia junto da família.
“Eu não me dou com o meu povo, meus tios, minha família. São todos egoístas. Eu sou livre. É muita crítica por lá”, diz Cleia.
Ela conta que saiu de casa após presenciar o assassinato do tio, pelo próprio primo, criado como irmão dela, na mesma casa, junto com a avó. O primo era usuário de cocaína e teria cometido o crime porque o tio não queria dar dinheiro para o uso da droga. Depois disso ela saiu de casa, caiu no mundo das drogas e deixou os filhos com a tia, disse chorando.
Já a história de Ailton da Silva Campos, de 36 anos, nascido em Campo Grande e criado no bairro Porto, é de uma infância perdida. Foi morar na rua com 10 anos de idade, após a separação dos pais, onde a mãe foi para o prostíbulo, entre um de vários ali do bairro, em que ele não podia morar junto. Depois disso sua vida foi somente cadeia e uso de drogas, a partir da maconha apresentada por colegas da rua, depois “pitilho” (mistura de crack com maconha) e o crack.
“Todo dia eu enfrento uma luta. Aqui é ruim, porque onde você vai o povo só fala de droga, só rola droga, não tem um lugar bom para se divertir, uma lanchonete boa para sair. Onde eu moro todo mundo da minha família briga, xinga e bebe”, lamenta Ailton, que participou da ação do projeto, no último dia 20 de julho.
Ailton é mais uma estatística de criança que não teve infância e foi para as drogas. “Minha vida foi só cadeia, choro e arrependimento. Passei fome e frio na rua: Natal, Ano Novo e Carnaval. Eu tenho 40 passagens de maior e 23 de menor, em assalto, furto e quebra de tornozeleira, tudo para sustentar o vício. Para comer eu pedia na lanchonete e em casa de pessoas”, conta o ex-dependente químico, que parou de estudar na oitava série para trabalhar, e hoje está empregado, sem filho, mas com o sonho de montar uma família, ter uma casa, uma vida digna e ser engenheiro civil.
Segundo Luciene, o Porto, bairro da antiga elite cuiabana, é um lugar limítrofe (que se situa ou que vive nos limites de uma extensão), onde tem pessoas de fora que vieram parar ali, sendo o primeiro e o mais antigo do que seria uma “Cracolândia”. Quese confunde com prostituição: existem as “cachorras”, que são as dependentes químicas, que se submetem a atender clientes que as prostitutas não querem, entre eles doentes, porque elas têm a urgência do uso, e estão em situação de rua.
“É muito dura a situação de algumas mulheres aqui. Existe a profissional do sexo, a prostituta, e a cachorra. Tem um centro antigo de prostituição no Porto, mas existe embaixo desses lugares, específicos, com trilhas na beira do rio, condomínios no sentido de acolhimento de pessoas, que permitem que elasvivam na condição de rua protegidos, não expostos. Porque aqui já teve muito extermínio: de passar carro de toda natureza atirando. É uma medida protetiva, como se fosse o último lugar de habitação”, diz Luciene, que é moradora nascida no Porto.
Um projeto como esse depara com dimensões de humanidade que nenhuma outra instituição faz. E para que a realidade mude, na visão de Luciene, seria levar acampamentos institucionais que fiquem pelo menos três dias por semana oferecendo serviços de atendimento de saúde, documentaçãoe passagem de reenvio à família, por exemplo.
O projeto Caravana da Rua para Rua propõe o aqui e agora, com direito a comida, água, lazer e ser ouvido, pois muitos não conseguem ser o que a família espera, por mais que tentem eles têm traços diferenciados e é preciso ter uma redenção entre a criação e a criatura. São adictos, portadores de uma doença.
“Quem somos nós para definir o que o outro vai ser. E o terceiro setor aqui celebra uma atividade urgente e necessária”, pontua a poeta.