SUELME FERNANDES

Neste último 8 de abril, enquanto Cuiabá celebrava seus 306 anos de fundação, a chuva trouxe à tona uma história de descaso e esquecimento de um rio.

O córrego Prainha, outrora navegável e vital para o surgimento da cidade no Séc. XVIII, transformou-se em um problema crônico de alagamentos, revelando séculos de más escolhas urbanas e ambientais.

O conhecido riacho Ikuiebo dos indígenas Bororo, rebatizado pelos colonizadores como Córrego da Prainha foi testemunha do nascimento do Arraial do Bom Jesus de Cuiabá em 1722, quando Miguel Sutil encontrou ouro em suas margens.

O nome dado pelos bandeirantes referia-se às suas margens espraiadas, local de lazer dos “descobridores”.

Apesar da atividade aurífera intensa e o uso de mercúrio nos anos iniciais, há quem se recorde ou já ouviu falar de um tempo em que esse córrego foi piscoso e possuía até águas banháveis.

Nas últimas chuvas, entubado em galerias subterrâneas de esgoto e drenagem, o córrego “vomitou” sua indignação, alagando ruas e avenidas.

De sorte, era um feriado com as ruas esvaziadas.

Tragicamente poético, o aniversário da cidade foi marcado não apenas pela ausência de festejos, mas pelo desabafo de um rio sufocado pelo progresso e a falta de planejamento urbano da capital. Um grito ambiental.

Numa planta baixa de Cuiabá, antiga de 1892 é possível ver o córrego em seu estado natural tendo inclusive no seu curso uma grande barragem de contenção ou lago natural para resistir as fortes chuvas.

Desde o século XIX, houveram inúmeras tentativas de “domar” o Córrego Prainha.

Nos oitocentos, foram feitas algumas obras de engenharia: pontes, paredes de pedra canga para contenções para evitar sua inundação, mas a urbanização desordenada e o aumento do fluxo de água tornaram essas soluções com o tempo insatisfatórias.

Em 1958, veio a primeira canalização com a concretagem do talvegue principal, mas seu leito continuava aberto.

Na década de 1970, houve uma segunda intervenção com objetivo de alargar as faixas de rolamento dos carros e para tentar conter os transbordamentos, excesso de lixo e mal cheiro em seu leito. Instalou-se bueiros celulares no seu canal, fechando sua calha principal.

Todas essas soluções urbanas se mostraram precárias e não evitou que de tempos em tempos a região se alagasse.

Enquanto isso, Cuiabá cresceu, o concreto imperou, os quintais desapareceram e o lixo aumentou – e o Prainha, agora escondido sob as ruas, continua a cumprir seu papel secular como canal de esgoto e drenagem de chuva, assim como há 300 anos.

O córrego que foi o motivo da fundação de Cuiabá, onde foi encontrado ouro, sempre foi tratado como um incômodo, um obstáculo ao Progresso e por isso foi ignorado e escondido.

Que este episódio sirva de reflexão poies é possível conciliar desenvolvimento urbano com respeito ao meio ambiente, mas isso exige planejamento, investimento e, acima de tudo, respeito as memórias sociais.

O Prainha ainda tem muito a nos dizer e vive nos dizendo. Cabe a nós ouvi-lo.

(*) Suelme Fernandes é mestre em História e membro do IHGMT.

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