A pílula antirressaca que começou a ser vendida no Reino Unido em julho e despertou a curiosidade de pessoas que buscam uma solução para beber sem as consequências incômodas do dia seguinte em breve chegará em território brasileiro. Ao GLOBO, a empresa sueca De Faire Medical, responsável pelo desenvolvimento da pílula Myrkl, afirmou que estão “lançando (o produto) no Brasil nos próximos três meses, mas a data exata ainda não está confirmada”.
Desde que começou a ser comercializada no mundo, há dois meses, a Myrkl já está disponível para envio a 18 países por meio do site oficial. Consumidores de lugares como Austrália, Nova Zelândia, Alemanha e França já podem garantir a pílula, lista que contará com o Brasil até o fim de novembro.
A caixa, com 30 unidades, é vendida no Reino Unido pelo valor de 30 libras, o que na cotação comercial desta terça-feira equivale a cerca de 180 reais – seis reais por comprimido, sem contar com o frete. De acordo com a De Faire Medical, a dose indicada é de duas pílulas antes da bebida alcoólica.
A Myrkl promete quebrar o álcool no intestino antes que ele chegue ao fígado, reduzindo assim a metabolização da substância no órgão e a quantidade na corrente sanguínea. Isso porque, no fígado, a molécula do álcool é quebrada em substâncias que produzem o desconforto no corpo, explica a endocrinologista Tassiane Alvarenga, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia Regional São Paulo (SBEM-SP).
— A ressaca é um conjunto de sintomas caracterizados por mal-estar, dores de cabeça, falta de energia, sonolência, que acontecem após a ingestão de álcool. Ela é causada pela quebra do álcool no fígado em dois componentes, o ácido acético e o acetaldeído, que são tóxicos para o nosso corpo. Por isso, a pílula busca quebrar o álcool antes de ele chegar ao fígado, para evitar a liberação das substâncias — diz a especialista.
No entanto, a pílula também reduz os efeitos da bebida no cérebro, característicos da embriaguez, então não é indicada àqueles que desejam beber em busca das sensações provocadas pelo álcool. Além disso, atua apenas sobre doses moderadas.
— Uma preocupação é que, pela diminuição da absorção do álcool, isso possa ser um gatilho para as pessoas beberem mais. Porque muitas pessoas bebem em busca dessa sensação agradável da embriaguez, mas, se a absorção de álcool diminui, você precisa de mais quantidade para ter os mesmos efeitos desejados — avalia o cirurgião de fígado e pâncreas, Ben-Hur Ferraz Neto, professor livre-docente da Universidade de São Paulo (USP).
Pílula de fato funciona?
O produto não se trata de um remédio, mas sim de um suplemento alimentar. Isso porque ele é composto por probióticos, bactérias consideradas boas para o intestino, além de um aminoácido chamado de cisteína para potencializar o efeito e uma dose de vitamina B12. No caso, o efeito desejado seria proporcionado pelas bactérias, que, ao chegarem na microbiota, passam a quebrar o álcool antes que ele vá para o fígado.
A pílula chegou a ser testada em um estudo, publicado na revista científica Nutrition and Metabolic Insights, em junho, que acompanhou 24 participantes. Eles tomaram dois comprimidos entre uma e 12 horas antes de ingerir duas doses de destilado. Em comparação com outro grupo, que não recebeu o suplemento, foi observada uma redução de 70% do álcool no sangue uma hora após as bebidas.
O produto era anunciado pela De Faire Medical como “o primeiro na história a quebrar o álcool de forma efetiva”. Porém, teve que reavaliar a propaganda devido às normas britânicas referentes à divulgação de suplementos alimentícios.
Uma série de relatos nas redes sociais e publicados por jornalistas britânicos que experimentaram o produto apontam de fato benefícios em impedir sintomas incômodos do álcool após a ingestão de baixas doses. Porém, há quem não tenha observado efeitos significativamente relevantes, e alguns especialistas criticam a evidência científica por trás da pílula pelo baixo número e diversidade dos participantes.
— O estudo é muito simples e pequeno, e mostrou apenas que a pílula leva a uma redução inicial do álcool no sangue. Mas isso não comprova cientificamente os efeitos para a ressaca. No estudo, os indivíduos ficaram também durante uma semana fazendo o uso dos probióticos, para só depois ingerir uma dose pequena de álcool. Então essa não é uma pílula milagrosa para o dia da bebedeira — alerta Ferraz Neto.
A hepatologista do Hospital São Vicente de Paulo, do Rio de Janeiro, Andreia Evangelista, concorda e explica que são necessários mais trabalhos, com um número maior de pessoas e de doses de álcool, para comprovar os efeitos alegados pela pílula.
— Parece plausível, porque indica a redução dos níveis de álcool no sangue, mas tem todas essas limitações do número de participantes. Além da quantidade pequena de álcool, normalmente quem senta para beber ingere muito mais do que isso. Essas questões precisam ser mais bem trabalhadas em estudos com mais participantes e maiores quantidades de álcool. Ainda é muito precoce ter uma conclusão definitiva — diz a especialista.
Ferraz Neto, da USP, chama atenção ainda que essa queda a curto prazo da absorção de álcool no sangue não foi comprovadamente associada a uma menor sobrecarga ao fígado. Por isso, mesmo com a pílula, os riscos do excesso de bebida para o órgão permanecem, além das consequências para o aumento de problemas de saúde, como doenças cardiovasculares.
— Nós pensamos sempre no figado porque ele vai sofrendo com o uso abusivo do álcool no decorrer do tempo de forma contínua e silenciosa. Ele não manifesta sintomas, pois vai tentando se regenerar. Mas aquilo vai danificando o órgão até que pode haver um quadro de cirrose sem nenhum alerta anterior, uma doença crônica e agressiva — afirma o cirurgião.
Ele reforça que os limites considerados adequados hoje de álcool seriam o equivalente a uma taça de vinho ou uma dose pequena de destilado ou uma cerveja e meia por dia. Porém, para aqueles que estão pensando em deixar de beber durante a semana e acumular todas as doses “permitidas” para o sábado, a notícia não é boa.
O especialista explica que essas doses precisam ser espaçadas durante os dias para estarem no limite considerado moderado para a saúde, ou seja, beber sete taças de vinho num único dia trará também impactos negativos, devido a alta quantidade de uma só vez.
Fonte: O Globo