Se hoje furar as orelhas de bebês recém-nascidos ainda é considerado normal, entre os antigos maias o gesto carregava um peso bem maior. A perfuração das orelhas marcava um dos primeiros ritos de passagem da infância e ajuda a “construir” a própria alma da pessoa. Isto é o que revela um estudo publicado na revista Childhood in the Past em novembro deste ano.
A pesquisa analisou 83 representações iconográficas de crianças em imagens dos períodos Clássico (250–950 d.C.) e Pós-Clássico (950–1539 d.C.), além de fontes etno-históricas e etnográficas, para entender a importância dos ornamentos de orelha na infância maia e em que momento da vida eles eram recebidos.
A conclusão aponta que a perfuração das orelhas era um dos primeiros ritos de passagem, geralmente realizada entre os 3 ou 4 meses e 1 ano de idade. Mais do que simples adornos, os brincos eram considerados extensões do ik’, a respiração vital do indivíduo. Em guerras, capturas de prisioneiros e, logo, de prisões em cativeiro, por exemplo, a retirada desses ornamentos simbolizava a perda da identidade social e até da humanidade do encarcerado.
Uma expressão da alma
Para os grupos maias Ch’ol e Tzotzil, a alma dos antigos maias era formada por 13 partes, que precisavam ser consolidadas por meio de rituais para evitar doenças ou mesmo a morte.
A maioria desses componentes que formam a alma estavam localizados na cabeça. Entre as principais partes, estavam o baah (identidade e personalidade), o ik’ (respiração ou vento) e o ohlis (memória e racionalidade do coração). Nesse contexto, a perfuração das orelhas se somava a outros ritos fundamentais da infância, como a modelagem craniana, modificações dentárias e o recebimento de roupas de acordo com o gênero.
Em comunicado, Yasmin Flynn-Arajdal, da Universidade de Montreal, acrescentou que “o deus clássico do vento é frequentemente retratado com ornamentos de orelha com o glifo ik’. Há também muitos exemplos de serpentes emergindo de brincos em imagens clássicas e pós-clássicas”, símbolos esse associados à respiração e ao sopro vital.
Os maias, por outro lado, não eram o único povo pré-colombiano a fazer as perfurações. Os astecas também o faziam, mas de uma maneira singelamente mais diferente. A perfuração asteca era feira por especialistas durante cerimônias especiais. Fato este que não se sabe indicar ao certo como funcionava entre os maias.
“É difícil dizer ao certo no caso dos maias: poderia ser a mãe ou o cuidador principal [a perfurar]. Para as crianças astecas, era um especialista, e a perfuração das orelhas era realizada durante uma cerimônia. Suspeito que fosse semelhante para as crianças maias. Membros da elite realizavam cerimônias de sangria em si mesmos, mas essas cerimônias eram frequentemente supervisionadas por sacerdotes ou figuras religiosas. A perfuração das orelhas poderia ser vista como uma espécie de cerimônia de sangria, então essas figuras religiosas podem ter sido as responsáveis por realizá-las. Mas não sabemos ao certo”, observou Flynn-Arajdal.
Indo além
Os rituais podiam ser prolongados, caso o indivíduo se submetesse a alargamento das suas orelhas. Assim como é feito atualmente – isto é, de forma gradativa –, os mais também incentivaram que a perfuração fosse sendo alargada gradualmente, com o uso de ornamentos cada vez maiores.
À medida que esses ornamentos aumentavam de tamanho, eles se tornavam mais elaborados. De acordo com Flynn-Arajdal, existiam diferenças sociais entre os materiais de cada peça. “O jade era uma mercadoria valiosa e estava disponível principalmente para membros da elite da comunidade, e as conchas marinhas também eram procuradas, mas também eram encontradas em algumas casas de pessoas comuns”.
Também foram encontrados ornamentos de cerâmica em contextos não elitistas. A pesquisadora crê que materiais como madeira, cordas e outros perecíveis também eram usados, mas infelizmente são raramente encontrados em sítios arqueológicos.
(Por Júlia Sardinha)
Entre os importantes ritos de passagem que ajudavam uma criança a construir gradualmente sua personalidade estavam a modelagem da cabeça e a perfuração das orelhas — Foto: PxHere



