Sabe-se que o sistema jurídico pátrio tem por base o Estado Democrático de Direito, que respaldado pela Constituição Federal da República Brasileira, regem a vida em sociedade nos seus mais amplos e diversos aspectos.

 

No campo do Direito Penal, todavia, a necessidade de rememorar os direitos fundamentais constitucionalmente garantidos, é incansavelmente cotidiana, uma vez que é nesse campo jurídico que os maiores desmandos do Estado na vida do indivíduo tem destino certo e recorrente.

 

Nesse sentido, a teoria da vedação à fishing expedition é uma discussão doutrinária  que tem ganhado espaço nos tribunais. E sua principal definição é garantir que a lógica das regras constitucionais não sejam subvertidas em nome do mal uso do exercício do poder.

 

Segundo Alexandre Morais da Rosa, a pescaria probatória se aproveita “dos espaços de exercício de poder para subverter a lógica das garantias constitucionais, vasculhando a intimidade, a vida privada, enfim, violando-se os direitos fundamentais, para além dos limites legais.” Para ele:

 

“Fishing Expedition ou Pescaria Probatória é a procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem ‘causa provável’, alvo definido, finalidad

e tangível ou para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém… O termo se refere à incerteza própria das expedições de pesca, em que não se sabe, antecipadamente, se haverá peixe, nem os espécimes que podem ser fisgados, muito menos a quantidade”. (ROSA, Alexandre Morais, 2021, p. 389-390)

 

É verdade que o expediente de pesca, recorrente via de regra através dos meios de obtenção de prova, ocorre também em outras medidas, tais como: interceptação telefônica, quebra de sigilo de dados (telefônicos/bancários), colheita de depoimento, dentre outros procedimentos que ganham certa notoriedade social.

 

É nesse sentido, permita-se o adendo, que a publicidade descuidada e precipitada de investigações e elementos ali colhidos (muitas vezes sem acesso a todas as partes envolvidas), tende a trazer a esses institutos um antecipado apelo social. E isso decorre de uma espetacularização midiática que a depender da investigação, ganha determinado caso, do qual não é (e não pode ser palco) o processo penal.

 

Em situações como essa, já não há paridade de armas às partes envolvidas na demanda (ausência do fair play), mas fica constatado o clamor social ao poder judiciário para que apresente uma resposta que atenda não o devido processo legal, não os princípios constitucionais, mas ao anseio da sociedade, ainda que fira as regras da própria norma Constituinte e Legislativa.

 

É o que o senso comum requer: recrudescimento das leis. Mas o deseja sem considerar uma série de fatores que precisa e deve considerar os agentes processuais (órgão investigativo/acusador/defesa/juízo), que diferente do leigo sabe, dentre tantos outros preceitos regentes do Estado Democrático de Direito que “ninguém será considerado culpado antes de sentença condenatória transitada em julgado” (art. 5º LVII, CF), após observância estrita do devido processo legal.

 

O que ocorre porém, mais vezes do que gostaríamos, é que baseados em especulações, “notícias anônimas”, colaborações premiadas (que muitas vezes não servem à elucidação dos fatos), deflagram-se operações, interceptam-se linhas telefônicas e outros dados sensíveis, vasculham o asilo inviolável (casa) no intento de buscar todo e qualquer vestígio, ou indício que se enquadre em qualquer conduta delitiva, para corroborar o ato, e não o contrário como manda a lei, fazendo da persecução penal uma verdadeira pescaria probatória, em que qualquer ‘pescado’ (indício de materialidade de qualquer crime – mesmo que não seja o investigado) sirva para, através do clamor social, respaldar o ato ilegal.

 

Assim, violam preceitos fundamentalmente constitucionais, e colocam em xeque (cada vez que há chancela judicial dos referidos atos, convalidando-os), o Estado Democrático de Direito, abrindo espaços não para o avanço enquanto sociedade (como pode sentir a massa social coletiva), mas retroagindo em décadas, aos superados sistemas escravagista, inquisitório e violador de direitos que já imperou outrora.

 

Em verdade, uma interpretação sem espaços para arbitrariedades, a partir da vedação à fishing expedition é o que merece cada vez mais ser aplicada na atual conjuntura jurídico-social no processo penal, conforme recentemente decidiu o Superior Tribunal de Justiça (22/03/2022), no julgamento do HC 663.055/MT ao aplicar a referida teoria em um caso de violabilidade do domicílio em verdadeira pescaria probatória.

 

Esse é o espírito da interpretação conforme a Constituição!

 

Diante disso, o avanço através da ótica constitucional no processual penal é o que se busca incansavelmente para que, vez após vez, as garantias individuais e fundamentais estejam verdadeiramente protegidas no Estado Democrático de Direito que incansavelmente defendemos.

 

*THALITA SOUZA SANTOS  é  Advogada no Escritório Segatto Advocacia. Graduada pela Universidade do Estado de Mato Grosso. Especialista em Direito Processual. Professora Universitária.

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