O pé de Burtele com seus elementos em posição anatômica — Foto: Yohannes Haile-Selassie/ASU

Publicado na Nature em 26 de novembro, um conjunto de estudos conduzidos por pesquisadores da Universidade Estadual do Arizona (ASU), nos Estados Unidos, oferece novas pistas sobre como vivia o Australopithecus deyiremeda, hominídeo que habitou o Vale do Rift de Afar, na Etiópia, há cerca de 3,4 milhões de anos.

As descobertas reforçam a ideia de que Lucy – a mais famosa representante do Australopithecus afarensis – não estava sozinha na região e que múltiplas espécies humanas ancestrais coexistiram no mesmo ambiente.

A pesquisa revisou achados que começaram em 2009, quando o paleoantropólogo Yohannes Haile-Selassie e sua equipe encontraram oito ossos de pé no sítio arqueológico de Woranso-Mille, na Etiópia. O anúncio preliminar veio em 2012, publicado na mesma revista que o artigo mais recente. Na época, a publicação já sugeria que o material pertencia a um hominídeo diferente do A. afarensis.

“Quando encontramos o pé em 2009 e o anunciamos em 2012, sabíamos que era diferente da espécie de Lucy, que já era amplamente conhecida naquela época”, afirmou Yohannes Haile-Selassie, da Escola de Evolução Humana e Mudança Social, em comunicado.

O enigma do Pé de Burtele

O fóssil – apelidado de “Pé de Burtele” – apresentou traços mais primitivos do que os pés de Lucy. Um detalhe anatômico chamou atenção: o dedão encontrado era semelhante ao observado no Ardipithecus ramidus, de 4,4 milhões de anos.

“A presença de um dedão do pé abduzido foi uma grande surpresa”, relembra Haile-Selassie. “Então, um milhão de anos depois, há 3,4 milhões de anos, encontramos o Pé de Burtele, o que é ainda mais surpreendente. Nessa época, vemos espécies como o A. afarensis, cujos membros eram totalmente bípedes com o dedão do pé aduzido”.

O Pé de Burtele conservava um dedão oponível, com dedos longos e flexíveis, o que se tornou importante para as caçadas — Foto: Yohannes Haile-Selassie/ASU
O Pé de Burtele conservava um dedão oponível, com dedos longos e flexíveis, o que se tornou importante para as caçadas — Foto: Yohannes Haile-Selassie/ASU

A descoberta de dentes e fragmentos cranianos na região, anos após o achado inicial, permitiu associar o pé a uma nova espécie: o A. deyiremeda, formalmente descrito em 2015. À época, porém, a conexão com o Pé de Burtele ainda era incerta, em parte porque alguns fósseis pareciam pertencer a camadas de sedimentos diferentes.

Segundo os paleoantropólogos, nomear uma espécie com base em elementos pós-cranianos – ou seja, elementos abaixo do pescoço – não é uma prática comum. Por isso a demora de anos para identificar os ossos de pé encontrados como pertencendo à espécie A. deyiremeda.

O espécime foi encontrado em 29 partes, das quais 27 foram recuperadas por peneiramento e coleta da terra peneirada — Foto: Yohannes Haile-Selassie/ASU
O espécime foi encontrado em 29 partes, das quais 27 foram recuperadas por peneiramento e coleta da terra peneirada — Foto: Yohannes Haile-Selassie/ASU

Reconstituição dentária

Entre os novos achados está a mandíbula de um indivíduo jovem. Segundo Gary Schwartz, também da Escola de Evolução Humana e Mudança Social, o espécime preservava uma dentição completa e vários dentes permanentes em formação.

Com auxílio de microtomografia computadorizada de alta resolução, os cientistas reconstruíram o padrão de desenvolvimento dentário e a análise indicou que o indivíduo tinha cerca de 4,5 anos quando morreu.

O sítio arqueológico de Woranso-Mille permanece sendo, até hoje, o único local com evidências sólidas da convivência simultânea de duas espécies de hominídeos — Foto: Dale Omori
O sítio arqueológico de Woranso-Mille permanece sendo, até hoje, o único local com evidências sólidas da convivência simultânea de duas espécies de hominídeos — Foto: Dale Omori

As composições químicas preservadas nos dentes revelaram diferenças marcantes na dieta de A. deyiremeda em comparação a do A. afarensis. Enquanto o primeiro consumia predominantemente alimentos de árvores e arbustos, Lucy e seus parentes tinham um cardápio mais variado, incluindo gramíneas e juncos tropicais.

Além da dieta, a locomoção também difere entre as duas espécies. O dedão opositor do A. deyiremeda sugere que ele mantinha grande habilidade para escalar árvores, mesmo sendo capaz de caminhar ereto. Já o A. afarensis exibia anatomia típica de bípedes obrigatórios. “Isso significa que o bipedalismo nesses ancestrais humanos primitivos se manifestava de diversas formas”, destaca Haile-Selassie.

As novas evidências reforçam a visão de que o cenário evolutivo no leste da África era mais complexo do que se imaginava. A coexistência das duas espécies sugere que nossos ancestrais experimentaram múltiplas soluções adaptativas para se mover, buscar alimento e explorar o ambiente.

O vídeo abaixo mostra mais detalhes sobre a pesquisa:

(Por Júlia Sardinha)