ELISMAR BEZERRA ARRUDA
Diz-me com olhar de quem se cansou de só olhar o mundo, desde as coisas do derredor, sem ânimo para se levantar e ir num confronto santo e necessário à urdidura de outro horizonte; de quem, cansado do cinza com que tingiram o seu tempo, imagina outro futuro, atormentado com a necessidade das coisas todas que sabe não estarem dadas e serem imprescindíveis para que haja aquela referência para um levante e outro caminhar do mundo. Então, olha as mãos: não são hercúleas; tateia o tempo curto, cheios de antanhos desanimadores, submetidos ao Poder que se impõe revestido de intensões de eternidade, de tudo fazendo para esconder que se assenta sobre o que desdenha desenhando aos olhares comuns, como nada, ou quase nada – de tão frágil que quer que pareçamos, a nós mesmos…
É difícil mudar o mundo, porque mudar é desassossegar tudo: até a velha dor, que se acostumou sentir – o medo é de tudo piorar!
Gosto mesmo é de ver a manhãzinha antes de outros olhos e seus olhares: a vejo virgem, livre de maldades que não sejam as minhas, de desejos que não sejam os meus – ah, nem me importo de que diga, ser isto, egoísmo; porque, ser pros outros, dar-se aos demais, tem lugar, tempo e prazo. Ninguém é para os outros indefinida e continuadamente, sem um tempo seu, de si mesmo, até para espantar o risco de se achar mais que os demais, e saber, profundamente-sentido, que os demais pulsam no teu ser, a te constituir contraditoriamente, em crise ou não. O ser em si é tormentoso, quando queda-se a pensar em si, ensimesmado: pode enlouquecer. Foi, talvez, o que se deu com Ismália, na torre; sabe, não?
O céu de Outono é assim, límpido, com vento manso e fresquinho, como se querendo acordar tudo com leveza, sem assustar, sem desespero de horário para o trabalho – o vento de Outono conhece o mundo pelo avesso: desvia-se da pressa mortífera, do frio intenso, do calor escaldante, demora nas coisas que o encanta, lambe rosas orvalhadas e arrepia as folhas das árvores grandes e pequenas, numa carícia insolente. Ele espanta as chuvas torrenciais, para se banhar na neblina fina e friazinha como mãozinhas de criança nascida de pouco; de jeito que para as plantas e os bichos mais sonolentas, o vento do Outono, que não é brisa, canta uma canção musicada por Vivaldi e Ravel com melodia de notas siderais, aprendidas nos desvãos de suas lembranças e saudades terreais…
O tempo de não fazer nada no Outono, corre muito depressa – porque o prazer não pode demorar sendo: é intenso demais para as fragilidades do corpo feito para a escravidão do trabalho-tormento. O prazer plenifica o corpo de todas as liberdades e, livrando-o de todas as sujeições, sacude-o desde as suas intimidades mais entranhadas, para que se veja-sentindo a imensidão de ser livre-alegremente, sem falsidade de riso de conveniência; então, demorasse mais o prazer, o corpo se exauriria de toda a energia que é. Veja: o prazer precisa ser intermitente e fugaz, porque o corpo em que se materializa, não se suporta em permanente gozo – há um mistério nisso, que, de tão leve e bonito que é, deverias gastar madrugadas inteiras olhando o desabrochamento de flores e rosas, e contar em sussurro, ao alvorecer, para quem estivesse ao alcance do nariz…
Nossa! É quase, já, meio-dia!
Comi comida tramada antes na alma, porque o tempo de não trabalho no Outono é, também, para alimentar o espírito carente do corpo com tempo para tramar afeição para si; e é outra, a comida feita no devagar do tempo manhoso, lânguido, que se mistura aos cereais e azeites e sais, a deixar a boca se rindo na satisfação do corpo sem outros afazeres, senão, o de nada-fazer – que, observai bem, não é não fazer nada, pois, às vezes, é só sentir. Daí que, quando a comida dança entre os dentes na boca, o corpo já está plenificado dos seus sabores; ah, aí um limoeiro que plantei e cuidei desde pequenino até agora, se ri de contentamento ali, no seu lugar necessário para compor a totalidade em que tudo acontece: ele sabe que gosto de ver riso inteligente, dos seres que sabem rir na hora necessária – ele se abre em dengos de flores e cheiros e frutos…
A carne, o seral e a ambiência se misturam movidos pela língua inquieta, extraindo vida que as mucosas captam antes, molhando tudo de gostos salivares, e mais sabores ao sentirem o Vinho com os cheiros e gostos milenares dos Andes. Sabe, o mundo cabe em cada pequeneza tão miudinha, que é difícil até de se imaginar, se não se pensa e crer no mundo como a imensidão que é, em que tudo está nele juntado totalmente e, que, para ser o que é, carece de cada parte, contraditoriamente – é do Sertão que se sente tudo isso melhor, nem sempre sabendo…
Então jogo-me na rede de algodão, imaginando a satisfação da planta dando-se em flores às abelhas, depois o capucho, a mão colhendo, outra mão fiando num velho tear, sob uma cantiga antiga: a rede abraça o corpo com sensualidade de casal em núpcias, dando-se toda na alegria de um gozo santo. Deixo-me entregue aos desejos da rede no seu cio bom; aí um passarinho, um sanhaço, vem perto, olha, diz alguma coisa que não entendo, bica algo numa folha, olha, depois voa: ele não precisa de mim para seguir sendo sanhaço – eu acho isso bom, porque, sem necessitarmo-nos, constituímos o mundo nosso, que necessita de cada um de nós para ser o que está sendo para nós. Não sei se o passarinho sabe disso – mas, sabendo ou não sabendo, ele é o sanhaço que é – e eu vi…
Lembrei que é Plenilúnio. Imagino que a Lua, como eu agora, esteja sem vontade para um sol quente demais, e fica a descansar sonolenta nalguma rede sideral, translúcida, que nenhum telescópio soube ver; e a rede vem trazendo-a com todo o cuidado, para não lhe atrapalhar o sono – para que, na boquinha da noite, ela resplandeça a Leste e venha alumiando os terreiros que ainda restam no mundo. Acho que devo dormir também. Sesta. Descansar do que não fiz na manhã, descansar de não ter me preocupado, descansar de não ter pensado num trabalho que poderia ser prazeroso, mas não é, por causa do interesse deletério que o orienta; porque também se descansa do gozo, depois de gozar. Se dormir, sonharei com tudo e, quem sabe, saberei depois contar tudo o que vi e inventei…
(*) ELISMAR BEZERRA DE ARRUDA é professor doutor das redes municipal de Cuiabá e da estadual de Mato Grosso. Foi presidente fundador do Sintep e Secretário de Cultura de Mato Grosso.
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