Gênios da humanidade sempre nos inspiram. Todavia, fugindo um pouco à obviedade de apenas louvar a qualidade artística em foco, irei um pouco além destacando outras qualidades capazes de conferir ainda mais brilho àqueles e àquelas que já nasceram para brilhar. Neste caso, falo de um artista que ainda cedo na vida teve de superar uma barreira quase incontornável para chegar aonde chegou: Ludwig Van Beethoven.

Beethoven, que em 2020 completa 250 anos de nascimento, é, sem dúvida nenhuma, um dos maiores compositores de todos os tempos, tido até por alguns como o maior de todos. E com a vida marcada pela necessidade de superação de uma limitação que poderia, inclusive, ter lhe abreviado a carreira. Se na literatura temos  os casos de Borges e João Cabral que tiveram de enfrentar a cegueira na velhice,  e, portanto, se viram privados do principal sentido físico para sua vida de escritores, o compositor alemão, ainda jovem, passou a enfrentar o problema da surdez: começou a perder a audição já a partir dos 26 anos e  foi progressivamente perdendo-a, de modo que quando compôs a Nona Sinfonia, pouco antes de sua morte (ocorrida em 1827), ele já estava de todo surdo.

Uma das explicações para isso repousa no fato de que ele não nasceu surdo, assim, teria conservado memória auditiva suficiente para continuar compondo em altíssimo nível.

A permanente disponibilidade para buscar o novo, quebrar paradigmas e ser capaz de projetar novos caminhos saindo da chamada zona de conforto, é uma das coisas que mais admiro nos seres humanos, sejam eles artistas ou não. Por isso, trouxe para este texto a lembrança de Beethoven, um artista múltiplo e revolucionário, que simboliza importantes passagens na história da música. E ele o faz porque protagoniza uma transição de estilos. Na história da música formal, faz a transição do período clássico para o período romântico: pega a técnica e o rigor do classicismo que havia alcançado seu auge com Mozart, na virada do século XVIII para o XIX, e faz isso explodir na expressão romântica. E, em seguida, projeta-se para o futuro, alcançando, mesmo, a contemporaneidade.

Assim, pode-se dizer que na Primeira Sinfonia sua música ainda tem um ‘cheiro’ de classicismo; na Terceira Sinfonia (conhecida como ‘Eroica’ que em italiano significa ‘heroica’), prevalece o tom romântico; e na Nona Sinfonia, já surdo, introduz o coral numa obra que é eminentemente instrumental; além disso, as sucessivas quebras de ritmo que faz na composição sem, contudo, interferir na harmonia geral, o faz ser considerado o precursor do rock por excelência – “o primeiro roqueiro heavy metal da história”, conforme afirmou recentemente o maestro Roberto Minczuc.

Admiro, pois, acima de tudo, em Beethoven a sua capacidade de romper com o estabelecido, de quebrar o status quo da composição musical e, no limite, do comportamento como ser humano. Um homem tido como rude e bravo que, no entanto, tem a maleabilidade necessária para estar sempre mudando.

Trata-se, como é óbvio, de um gênio da composição. Mas, neste marco dos seus 250 anos, o que quero deixar para os amigos leitores é justamente seu exemplo quanto à capacidade de transformação das pessoas. Em que pesem todas as limitações, todos os desafios, é possível se transformar e, com isso, alcançar ainda mais excelência naquilo que você faz.

Beethoven é um belo exemplo de homem que supera a surdez e seu temperamento difícil, se reinventa, se recompõe e galga este lugar de glória na história da humanidade que ninguém mais tira.

Guardemos para sempre, pois, essa lembrança a nos orientar.

 

*FABRÍCIO CARVALHO  é maestro da Orquestra Sinfônica da Universidade Federal de Mato Grosso.

CONTATO:       www.facebook.com/fabricio.carvalho.509

Beethoven é um belo exemplo de homem que supera a surdez e seu temperamento difícil, se reinventa, se recompõe e galga este lugar de glória na história da humanidade que ninguém mais tira