ELISMAR BEZERRA ARRUDA
Nos sertões do Brasil de outrora, as festas eram animadas por artistas tocando e cantando ao vivo; o que lhes exigia saber tocar e cantar, ter voz boa. Dançava-se embalados por suas capacidades e talentos artístico-musicais, tocavam de ouvido, nem sabiam da existência de escola de arte. Cada lugar tinha seus sanfoneiros, tocadores de pandeiro, triângulo, zabumba, pífano, os cantores. Um tio nosso tocava pífano, na juventude, animava festas; numa dessas, depois de muito esforço, passou mal, e nunca mais tocou – poque a vontade de viver, às vezes, supera o ânimo e as alegrias do artista…
Lembro dessas festas, entravam noite adentro e, para os adultos, ia até o sol nascer. De bebida: a cachaça, conhaque e alguma cerveja, que era bebida mais sofisticada; nenhum menino ou menina bebia, mas dançavam. No salão coberto de palha, às vezes construído só para aquela comemoração, geralmente de santo, estendiam-se grandes bancos rústicos de madeira não trabalhada, onde as pessoas se acomodavam, notadamente as moças e mulheres; todos esperando a vez ou um convite para uma dança, ou descansando. Rodopiavam em gestos respeitosos e animados, uma vez, duas e, se o mesmo par seguia mais vezes dançando, era namoro começando.
Mas, também, acontecia de o sujeito convidar uma moça pra dançar, e ser “enjeitado”; aí, diante da vergonha egoística de ter sido recusado, o machismo falava alto em seu ser patriarcal, e ele decretava: “se não dança comigo, não vai dançar com mais ninguém aqui…” Era a manifestação da violência cultivada em milênios de afirmação da suposta superioridade masculina, em face da mulher-subalternizada, tentando se impor pela anulação da presença de quem o dispensara; como se a lhe dizer e aos demais, que o seu querer de homem era maior e mais importante, que as vontades e desejos de mulher.
Ocorria, então, de a moça ficar ali, subsumida na ameaça, sem se divertir, só com a solidariedade silente da mãe e de alguma amiga; mas, se tinha irmãos ou pai por perto, a coisa tomava outro rumo. Estes confrontavam o valentão, desafiando-o, não em defesa da irmã, mas da própria honra, e, cara-a-cara tascavam: “que negoço é esse de proibir nossa irmã de dançar, rapais?”. Pronto, um pé de briga estava arrumado – das duas, uma: ou o valentão ia embora da festa, engolindo seu orgulho ferido, ou o pampeiro começava com murros e, às vezes, seguia com faca e tiro, acabando em farmácia ou velório, porque hospital não existia naqueles ermos.
Mulher naqueles tempos e lugares não tinham direitos, tinham deveres, obrigações; seus sonhos e vontades, ou eram satisfeitos com o marido, ou ficavam latentes em si; de jeito que só muito raramente, alguma se encorajava em vivê-los sob o risco de morte. Foi assim, certa feita: mulher casada, marido de posição, respeitado em seus afazeres e ocupações sociais; as carnes lhe atiçaram, em surdina, as necessidades insatisfeitas, os desejos de gozos negados, até lhe encorajar para a aventura de realizar aquelas vontades que lhe queimavam dias e madrugadas insones, silente. De maneira tal, que, num dia, depois das furtividades, dos agarramentos escondidos e ligeiros não serem suficientes – deu-se à ideia tramada nesse encontro, de se ir embora, com o amante…
Nos lugarejos e corrutelas ninguém se fazia despercebido, tinha-se logo a falta de quem não se levantou cedinho para tirar ou entregar o leite, do que não passou à porta para o “bom dia” costumeiro, dum que não se ouviu dele o cantar do machado na lenha para o fogão, ou o grito de uma mãe chamando o menino rueiro. Manhãzinha malnascida: deu-se falta da mulher, o marido. O lado dela na cama não tinha lençóis amarrotados, na cozinha ninguém, nem no quintal sem muro; só o silencio da ausência incomum, desarrumando a normalidade do amanhecer, desesperando o marido desconfiado, a imaginar o que sentia ter acontecido. Desacorçoado e com vergonha ouviu a vizinha lhe dizer que não a tinha visto, nem sabia o que ele sabia que ela desconfiava, quase sabendo; seu corpo se enfraquecia de desânimos e calafrios, pois, dali a pouco, todo mundo saberia do sumiço…
Nem era o meio da manhã, e todo mundo já comentava: “ficou sabendo, fulana fugiu!”, “minino, coitado do fulano, a mulher dele anoiteceu e não amanheceu!”, “fugiu com quem?”, “óia, comadre fulana acha que foi com aquele sem-vergonha da cara safada!”. Chegou a notícia ao chefe do lugar: “Mais que safadeza é essa, que tá aconticendo aqui? Vai chamar compadre fulano!” O marido cheio de vergonha e dores de abandono, pôs-se em frente ao coronel com olhar no chão, ombros arriados: “pois é compadre, aconteceu isso…” “Num deve de estar longe! Se voaram: deixaram sombra; se foram a pé: deixaram rastro; se caíram n’água: tem banzeiro! Vamo pegar os sem-vergonha!” O marido ouvia tudo em silêncio, sem gestos, desolado: sabia onde aquilo podia terminar. Um frio fino subiu e desceu-lhe pela espinha: se pudesse, pediria que a deixassem seguir seu caminho…
Dúzia de homens embarcaram no batelão e desceram o rio, como o chefe-coronel na proa e o marido posto do seu lado, triste. Olhares atentos, diligentes, vingativos. Rifles papo-amarelo, resolveres, espingardas, facas, punhais; cartucheiras cheias de balas. Lá adiante, numa praia, com o sol já pendendo para o poente, avistaram a canoa encostada; os dois sentados, lado a lado, na areia. Levantaram-se sem ânimo pra enfrentamento, nem para a defesa impossível. Só ela olhava a todos, desafiante, segura de si, sem demonstrar arrependimento ou medo – porque não se envergonha do amor. Olhou o marido sem desprezo, vendo-o fragilizado, ladeado pelo coronel e os demais, cheios de um ódio que sabia que ele não tinha; talvez, sentisse pena…
A voz do coronel trovejou, numa ordem seca e definitiva, enquanto entregava o rifle para o marido: “Atira na vagabunda!” O peito bonito e bem feito arfava, nenhuma lágrima ou reclamo dela, só o coração denunciava a sua agonia. O tiro lhe rasgou as carnes sem dor, fazendo um rombo assustador nas costas, por onde o projétil saiu, levando partes do coração sem vida. As outras armas matraquearam, jogando por terra o amante. Ali mesmo, foram enterrados – sem cruz, sem uma lágrima, sem lamento, sem um gemido…
Descobriu depois, que o amor não morre. Quando no longo curso dos anos, chorou aquela desgraça, em noites de agonia e arrependimentos sem fim. Casou-se novamente, sem nunca esquecer aquilo… Diz-se que se trancava no quarto, sozinho, e chorava num silêncio desesperador, ouvindo música clássica no rádio; guardava só consigo a dor daquele dia. Fez-se de poucas palavras, como se em um luto sem fim, subjugado àquela hora miserável, em que se dobrara àquela ordem macabra. Viveu assim, triste. Assim criou com decência e amor filhos e filhas; deu-lhes conforto e educação exemplar. Viveu longos anos, viu a velhice chegar sem nada esquecer; como se a pagar, dia a dia, a sua falta de coragem para gritar aos outros, a sua conformação – e pedir-lhes, que a deixassem ir…
(*) Dr. ELISMAR BEZERRA ARRUDA é professor.
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