Que são sete os pecados capitais quase todos sabem; quais são já é outra conversa. Isso porque houve, de tempo em tempo, mudanças nessa lista, cuja origem é anterior ao próprio cristianismo. Do monge Evágrio do Ponto, no século IV: Gula, Avareza, Luxúria, Ira, Melancolia, Preguiça, Orgulho e Vanglória (oito pecados); De Tomás de Aquino, no século XVII: Vaidade, Inveja, Ira, Acídia (Preguiça), Avareza, Gula, Luxúria (sete pecados); de Dante Alighieri, na Divina Comédia: Soberba, Avareza, Luxúria, Inveja, Gula, Ira, Preguiça, Heresia, Mentira (nove pecados); já neste século, do papa Bento XVI, além da Saligia (acróstico dos pecados capitais em latim); os pecados atuais: Pressa, Manipulação Genética, Interferir no Meio Ambiente, Causar Pobreza, Ser muito Rico, Usar Drogas, Causar Injustiça Social.
Leia Também:
-“Democratização do acesso ao cinema no Brasil”
-Gerânios, Divino…
-O Beijo no Asfalto e a pós-verdade
-A parábola da ilha desconhecida
–Uma vela para Willian
-Os sinais
-A greve mais justa da história
Além dessas relações, há outras – claro que todas, à sua maneira, com função de “moldar” o ser humano – porém a de Alighieri é a única que inclui a Mentira. Na obra “ A Divina Comédia”, no nono círculo – o da traição – está o gélido lago Cocite, que pune os mentirosos, nele o florentino expatriado narra os tipos de traição e os correspondentes suplícios a que seriam submetidos tais pecadores.
Muito se escreveu sobre Fake News e pós-verdade, mas pouco se discute sobre a mentira como comportamento social. Não seria nenhuma abominação afirmar que a sociedade (contemporânea), especialmente por conta das redes sociais, vive sob o jugo das falácias.
Segundo Machado de Assis “A mentira é muitas vezes tão involuntária como a respiração”, nessa perspectiva, mentir é inerente ao indivíduo e, consequentemente, é impossível viver em sociedade sem mentir;portanto, pensando assim, ninguém estaria livre do inferno dantesco.
Antes dos questionáveis e dos improváveis castigos impingidos aos mentirosos após a morte, há o martírio da eterna dúvida, que nasce quando ocorre a quebra da confiança, quando o discurso do outro carece de credibilidade. A MPB está repleta de canções que falam sobre o nono pecado capital; inclusive, bem mais críveis que a obra de Dante e, ao mesmo tempo, ambíguas como são os sentimentos humanos. Ainda mais quando se fala em traição, em quebra de confiança, por exemplo, em “Cansei de ilusões” (Tito Madi): ‘Mentira foi tudo mentira/ Você não me amou/ Mentira foi tanta mentira/ Que você contou’ ou ainda em “Mil perdões” (Chico Buarque):‘Te perdoo/ Por quereres me ver/ Aprendendo a mentir (te mentir, te mentir)’. As reações diante do engodo na relação amorosa são imprevisíveis; todavia, em maior ou menor grau, refletem padrões construídos com base em um modelo de sociedade patriarcal e, principalmente, fálico. Assim, prosperam atitudes que vão desde a separação conjugal até o feminicídio.
Em tempos líquidos, onde o conceito de pecado desmancha-se, dissolve-se como os demais valores da sociedade sólida, vive-se a ambivalência entre o perene e o efêmero (quer-se, simultaneamente, sentir-se atado e liberto), sem perder de vista a troca, a reciprocidade. À medida que a Mentira impera, há a frustração e isso, para a maioria, leva ao sofrimento; para a minoria, à poesia: ‘Que todas essas coisas tantas/
Que essas coisas todas tontas/ São só mentiras de você/ Diga/ (…)/ Que o amor foi tudo/ Por isso, minta, por favor/ Diga que sem o meu amor/ Você não pode mais viver’ (“Mentira” – João Donato).
*SÉRGIO CINTRA é professor de Redação e de Linguagens em Cuiabá.
CONTATO: sergiocintraprof@gmail.com