O dedinho acordou aflito para pular da cama e começar o dia. Fez um dejejum frugal, calçou o tênis e pôs-se a caminhar. Cinquenta voltas para tensionar os músculos e curar a unha de um fungo persistente que o atacava frequentemente. Sol ajuda, disse o pai.
Cansado, o dedo mínimo trocou o tênis pelo chinelo e foi tomar banho. Lavou-se na água fria: o calo, a unha, as dobras e todos os demais cantos do minúsculo corpo.
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Mal enxugou-se e correu espevitado, olvidando os conselhos do pai: cuidado com as quinas da cama! O dedinho, porém, fazia ouvidos moucos. Julgava-se mais potente que o dedo médio, seu irmão mais velho, e mais forte que o próprio pai, o polegar.
Espevitado, cruzou descalço a cozinha e a sala, local onde parou para ver o jornal. Não se importava com as tragédias do dia a dia porque dedinhos não temem nada além da malícia das quinas de madeira, predadoras de dedos desde que o mundo é mundo.
Não demorou muito para que se estorvasse com as notícias que não lhe diziam respeito. Os noticiários estão muito mais preocupados com pulmões e coração do que com dedos, suspirou acabrunhado.
Subiu a escada com o enfado dos exilados que legam à inutilidade os pés e entrou no quarto com a cabeça distante. Sem que percebesse, uma quina espreitava seus movimentos. Parada, a quina preparava-se para o bote certeiro. É bem conhecida a estratégia das quinas.
Para apanhar o dedo, elas tentam se misturar ao cenário tal qual camaleões. Quando menos se espera, atacam com uma única investida, geralmente curta e dolorosa.
Ao ver o dedinho se aproximar, a quina manteve-se inerte. Mas, assim que a vítima entrou no raio de ação, avançou sobre ele, chocando-se contra a unha frágil que se partiu imediatamente em duas.
Alvejado pela quina cruel que recuou após o golpe fatal, o coitado cambaleou como que envenenado. Sentia no peito dor parecida com um infarto, aquela inconfundível fisgada paralisante. Assim que recobrou a razão, ralhou com os irmãos, magoado que estava por não o avisarem do perigo iminente.
O ressentimento estendeu-se ao pai, maior de todos, que maldosamente omitirá do filho a quina traiçoeira.
Hoje, domingo, o dedinho passa bem. Recuperado do choque já balança no ar com alegria de ver a unha arroxeada recompor-se.
Achegou-se à família, desculpou-se pela desinteligência do dia anterior e deu um abraço apertado nos irmãos. Voltaram a andar juntos como sempre.
O pai, grande e casmurro, afagou a cabeça desmiolada do caçula antes de repetir uma velha lição passada entre os dedos de geração a geração: meu filho, a vida ensina pelo amor ou pela dor. Disse isso e voltou ao silêncio habitual dos maiores.
*EDUARDO MAHON é advogado e escritor em Mato Grosso; ex-presidente da Academia Mato-Grossense de Letras (AML). E pai de 20 dedos.
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