Em “O Beijo no Asfalto”, de 1961, o genial Nelson Rodrigues antecipa conceitos de Fake News e de pós-verdade. Na peça de três atos, o dramaturgo flerta, ainda que indiretamente, com esses conceitos tão difundidos na contemporaneidade. Arandir, atendendo ao último pedido de um homem atropelado, beija-o na boca. Beijo presenciado pelo inescrupuloso Amado Ribeiro (imprensa) que, com a cumplicidade do delegado Cunha (poder), cria a manchete sensacionalista “O Beijo no Asfalto” e reportagem cujo conteúdo infere que o protagonista seria homossexual.
Tem-se aí dois importantes componentes daquilo que se conhece como a Era da Pós-verdade: não apenas a repetição da falácia como também a desqualificação daquele que detém a verdade dos fatos.
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O povo, do qual tudo emana, tem sido, por meio de seus adágios, fonte inspiradora da maioria dos intelectuais no decorrer do tempo. Todos conhecem o ditado popular “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, talvez essa ideia tenha inspirado o monstrengo Paul Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, ao cunhar: “Uma mentira repetida 1000 vezes, torna-se verdade”.
Observou-se, recentemente, que a manipulação e a distorção da informação é  um dos métodos mais usados para transformar inverdades em fatos peremptórios, por exemplo, a difusão, especialmente, nas mídias sociais de notícias falsas.
Essas mentiras vendidas como verdade têm influência em parcela significativa da população, isso acontece devido à incapacidade desse público de fazer juízo de valor que privilegie o raciocínio lógico e os fatos ao invés de razões sensíveis e emoções.

Outrossim, desqualificar o outro, o oponente é mais uma das estratégias mais  utilizadas para escamotear o cerne da discussão.
O britânico Graham estabeleceu, em 2008, um método no qual elenca, de forma piramidal,  sete níveis de discordância em relação ao discurso do oponente:  Xingamento – “idiota”, “coxinha”, “petralha”; Ad homini – consiste em macular, diminuir o opositor – “Maus brasileiros não podem divulgar números mentirosos” (Bolsonaro sobre o ex-diretor do Inpe, Dr. Ricardo Galvão); reposta ao tom – concentra nas impropriedades apresentadas no uso da variante padrão da língua; Contradição – simplória, parte da mera negação à afirmação do adversário; Contra-argumento – contradiz o argumento com ideias baseadas em raciocínio lógico, dados, fatos comprováveis etc.; Refutação – opõe-se à consequência de determinado argumento; Refutação do ponto central – descontrói o argumento em si. Infelizmente, predominam, nos embates, inclusive virtuais, apenas os três primeiros. Isso contribui significativamente para escamotear a discussão em relação aos grandes problemas da nação.
Até que ponto mentira e desqualificação seriam determinantes na formação do ponto de vista de alguém? Será que a mudança no comportamento não teria mais influência sobre as pessoas? Claro que não são respostas fáceis, mas, com certeza, perpassam pela compreensão da “Modernidade Líquida”(Zygmunt Bauman), na qual tudo é efêmero, individual, subjetivo, emocional e intangível, inclusive a Verdade.
Sérgio Cintra é professor de Redação e de Linguagens em Cuiabá, Cáceres e Rondonópolis.

 

*SÉRGIO CINTRA   é professor de Redação e Linguagens em Cuiabá, Rondonópolis e Cáceres. Já foi vereador por Cuiabá e secretário de Cultura.
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