Por Edna Sampaio
Toda violência contra as mulheres é, antes de tudo, violência política.
Dividi-la em categorias — doméstica, institucional, simbólica — é uma tentativa de dissimular sua natureza profunda: ela nasce do mesmo lugar, brota pela mesma razão, carrega a mesma fúria. Sempre que uma mulher ousa afirmar sua autonomia, sua voz, sua diferença, sua presença soberana no mundo, a violência aparece como resposta. Surge na ira dos que não suportam a divergência, o plural, o protagonismo feminino.
Assim, pequenas discordâncias viram batalhas inconciliáveis; opiniões distintas se transformam em trincheiras; tensões se convertem em estratégias de expulsão. A intenção é sempre a mesma: impedir a existência plena da mulher — e, em seu limite mais perverso, destruir sua vida. É disso que se faz o feminicídio.
A violência contra a mulher não é “doméstica” porque ocorre dentro de uma casa; ela é política porque ocorre dentro de uma ordem que decide, por ação ou omissão do Estado, que corpos de mulheres podem perecer e deixar morrer. Mesmo quando acontece na intimidade de um lar, ela se dá, na verdade, no centro da ágora — no espaço público simbólico— como ritual de punição à ofensa de masculinidades feridas pela autonomia da mulher.
De março de 2023 até 09 de dezembro de 2025, atravessei a mais grave e vergonhosa perseguição política já registrada em Mato Grosso contra uma mulher. Uma violência de gênero que expôs, sem pudores, a face covarde de um patriarcado acostumado a não ser contrariado por mulheres — muito menos por mulheres negras — nos espaços de poder.
Antes que uma desembargadora lembrasse das orientações do Conselho Nacional de Justiça sobre julgamentos com perspectiva de gênero, não me foi concedida sequer a presunção de inocência. Não havia acusação criminal contra mim. Não havia denúncia real. Mas havia o velho mecanismo patriarcal que transforma professoras, servidoras públicas, mães, em alvo preferencial quando ameaçam a ordem dos homens que controlam a política e o poder. E o Estado, enquanto Poder, ele é feito por homens.
Fui castigada por uma denúncia que nunca existiu — a não ser na narrativa de quem organizou e se beneficiou diretamente do meu sacrifício.
“Rachadinha!” — gritavam.
A dor maior vem da hipocrisia. Aquela que normaliza o preconceito, autoriza o racismo, legitima a misoginia sob a capa de uma punição inventada como “justa”.
Foram duas cassações humilhantes. Dois processos flagrantemente ilegais sustentando um discurso tão hipócrita quanto ruidoso sobre verba indenizatória. A mentira passou a gritar tão alto que tentava silenciar a própria verdade. E a verdade — essa todos conhecem — tornou-se irrelevante num tempo em que a mentira é arma de destruição política.
Como as instituições democráticas foram sendo capturadas por interesses privados tão vis que nada têm a ver com a democracia e nem com o papel que as instituições deveriam cumprir?
A perseguição política me impediu de ser candidata em 2024. Uma mulher impedida pelas próprias instituições democráticas de disputar eleições, em razão de um de um vale tudo de gente inescrupulosa.
E o que aconteceu com os homens realmente investigados por crimes, afastados por desvios milionários de recursos públicos, suspeitos e até filmados recebendo propina? Nada!
Seus direitos políticos jamais foram ameaçados, suas honras foram preservadas mesmo quando a saída triunfal do parlamento pudesse ter acontecido em um camburão da polícia. Eles estão a salvo de toda crueldade que praticam contra os outros… ou outras.
Agradeço a decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, mas não celebro o caminho.
Ele me mostrou o tamanho da luta que temos pela frente para que nenhuma mulher seja silenciada, interrompida, impedida de existir por desafiar o poder dos homens — inclusive daqueles que encontram, entre algumas mulheres, as suas mais fiéis aliadas.
Nunca a luta das mulheres por humanidade, dignidade e direitos me pareceu tão urgente. É uma luta por sobrevivência.
*Edna Sampaio
É doutora em Ciências Sociais
Professora da UNEMAT, Gestora Governamental
Primeira suplente de Deputada Estadual pelo PT/MT.
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