Madrugada de segunda-feira, 10 de dezembro de 2012. Cuiabá derrete em chuva. Pego a estrada. Deixo a BR-364, dobro à esquerda para Campo Verde. Um pastel de carne com suco de laranja em Primavera do Leste, onde abasteço. General Carneiro, Barra do Garças e Nova Xavantina, com uma parada para o almoço solitário. Água Boa e Ribeirão Cascalheira. O tempo fechado anuncia mais chuva, e tempestade foi o que não faltou no trajeto. A coalhada em Cascalheira era famosa. Compro biscoitos. Por prudência era melhor pernoitar ali mesmo, para fugir dos atoleiros noite adentro e da incerteza de pouso no meu destino, a vila de Estrela do Araguaia, que todos chamavam de Posto da Mata. Ao amanhecer pego o trajeto sem pavimentação. Por volta de 13 horas estou num ambiente de apreensão, medo, incerteza, dor e revolta íntima. Sem saber o que fazer a população olha para todos os lados, e para onde o olhar apontasse havia uma farda e um policial pronto para cumprir a desintrusão que botaria todos no olho da rua. Percorro as ruas enlameadas e vejo famílias tentando retirar o que fosse possível de seus barracos. Penso comigo que além da injustiça do Estado Brasileiro contra aquela gente humilde e indefesa ainda pesava o dissabor de Mato Grosso ser liderado por Silval Barbosa e José Riva, os dois políticos que cruzaram os braços temendo o Ministério Público Federal (MPF) – autor do pedido de desintrusão – pois ambos estavam encralacados em processos por improbidade administrativa até o pescoço.

No dia 12 a soldadesca avançou sobre as moradias, o comércio, as duas escolas, a Igreja de Nossa Senhora Aparecida, o posto de saúde e botou tudo abaixo. Enquanto gritos de desespero se ouviam, bombas de efeito moral eram lançadas sobre a população e tiros de borracha disparados a ermo.
Os moradores foram arrancados de suas casas e jogados à beira da BR-242, de onde foram levados para o município de Alto Boa Vista, numa área rural arenosa, sem água e sem nenhuma infraestrutura para receber mais de três mil homens de mãos calejadas, donas de casas, adolescentes, crianças, bebês, anciãos e portadores de necessidade especiais. A sabedoria popular apelidou aquele lugar de Saara.
A desintrusão cedeu espaço para a consolidação da Terra Indígena Marãiwatsédé, dos xavantes, com 165 mil hectares nos municípios de São Félix do Araguaia, Alto Boa Vista e Bom Jesus do Araguaia, todos no Vale do Araguaia.
Sem entrar no mérito da desintrusão da área rural, cujos posseiros poderiam ser removidos para os incontáveis assentamentos da reforma agrária no Vale do Araguaia, se o Brasil não tivesse órgãos públicos que são verdadeiras ilhas e agem de costas uns para os outros. Sem necessidade de reinventar a roda seria possível fazer remoção individualizada permitindo que o posseiro retirasse seu gado e outros bens, sem necessidade de vendê-los a preço de banana, como aconteceu com muitos.
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TRÁGICO – A desintrusão não foi determinada de uma hora para outra. As autoridades mato-grossenses tiveram tempo para buscar uma composição que não impedisse o cumprimento, mas que preservasse a dignidade dos posseiros. Poucos dias antes do fato, numa coletiva do governador Silval Barbosa e do mandachuva na Assembleia, José Riva, para tratar do assunto, sugeri a ambos – numa conversa particular – que os dois transferirem as sedes do governo e da Assembleia para Estrela do Araguaia, como marco de resistência pacífica ao ato que se anunciava. Acrescentei que o Estado deveria propor à União, a construção de uma vila sobre a área urbana de Alô Brasil (de Bom Jesus do Araguaia) para realocar os posseiros. Essa vila passaria a ter a mesma localização estratégica de Estrela do Araguaia (que se localizava no cruzamento das rodovias federais 158 e 242). Isso, o tempo se encarregou de nos mostrar: os xavantes e a Funai não permitem que a BR-158 cruze Marãiwatsédé e o governo pavimenta o chamado Contorno Leste, que deixa o leito da BR-158 e cruza as cidades de Bom Jesus do Araguaia, Serra Nova Dourada, Alto Boa Vista e retorna ao trajeto daquela via, mas fora da terra indígena. Mais ainda: seria o deslocamento de Estrela do Araguaia em direção a Ribeirão Cascalheira, mas sem afastá-la da rodovia que lhe deu vida.
Silval e Riva trocaram olhares quando lhes falei sobre esse cenário. Nenhum queria enfrentar o MPF, por conta de seu histórico de desvio de recursos públicos. Se ao invés deles, Mato Grosso tivesse outros líderes, seguramente a desintrusão urbana seria retardada por alguns meses ou até mesmo um ano, para a transferência dos moradores para a nova vila araguaiense. Mato Grosso pagou o preço de manter Silval e José Riva à frente de seus destinos políticos.
TRISTEZA – Presenciei a desintrusão. Minha vista ficou embaçada não somente pela fumaça das bombas dos policiais. Algumas lágrimas teimavam em escorrer pela face. Em alguns livros que escrevi tentei retratar aquele amargo momento mato-grossense.
A fraqueza de José Riva e Silval Barbosa foi o golpe de misericórdia na vila Estrela do Araguaia. Creio que o Supremo Tribunal Federal (STF) permitiria a presença dos moradores até a construção da vila. Afinal, a aplicação da lei era somente para contemplar os xavantes e não para massacrar os posseiros, como aconteceu.

Hoje, qualquer dor de barriga judicial em Mato Grosso, delegações de políticos recorrem a Gilmar Mendes, o ministro que é mato-grossense, e àquela época já ocupava cadeira no STF. Por azar, em Mato Grosso estavam José Riva e Silval Barbosa, e em Brasília, na bancada federal com 11 congressistas, somente o deputado Homero Pereira (PR) protestou; ficaram calados os senadores Jayme Campos (União), Blairo Maggi (PR) e Pedro Taques (PDT); e os deputados Wellington Fagundes (PR), Valtenir Pereira (PSB), Ságuas Moraes (PT), Carlos Bezerra (PMDB), Nilson Leitão (PSDB), Júlio Campos (DEM) e Eliene Lima (PP).

A vila Estrela do Araguaia é uma saudade que a classe política mantém sepultada. Melosos vídeos de quem anda atrás de votos mostram isso, aquilo e aquilo outro, mas ninguém toca na omissão da bancada federal nem na fraqueza de José Riva e Silval Barbosa. Na Assembleia, onde o clima é de disputa eleitoral coletiva em 2026, esse episódio é mantido debaixo do tapete, tanto quanto as prisões de José Riva, no cilco em que foi deputado – quando tal acontecia as sessões transcorriam normalmente, com a mesma serenidade superficial de agora, quando o escândalo das emendas parlamentares para a Secretaria Especial de Agricultura Familiar (Seaf) comprar kits para a reforma agrária, que virou inquérito policial e está abafado porque a força do poder manda e desmanda nesta terra onde há 13 anos Silval e José Riva viraram as costas para os posseiros da vila Estrela do Araguaia.
Fotos:
2 e 3 – Eduardo Gomes
4 – Divulgação
5 – Conexão Emancipacionista
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