Há 28 anos, o Sindicato dos Atletas Profissionais do Estado de São Paulo (Sapesp) tem o mesmo presidente: o ex-goleiro Rinaldo Martorelli. Nesses 28 anos, foi reeleito seis vezes e transformou o cargo num negócio lucrativo. Ele começou por criar uma remuneração para sua função, aumentou-a sistematicamente, elaborou um bônus milionário e retroativo, reteve valores que poderiam ser repassados a atletas, contratou o próprio filho e transformou o sindicato numa empresa de agenciamento de jogadores.

A reportagem do ge obteve uma série de documentos em cartórios de São Paulo que contam como o ex-goleiro do Palmeiras assumiu o sindicato numa época de vacas magras e aproveitou o crescimento do futebol para transformar seu cargo no Sapesp num senhor emprego. São atas de assembleias, balanços, orçamentos, correspondências e alterações de estatuto.

Martorelli assumiu a presidência em 1993. Por sete anos, não ganhou salário. Até que em janeiro de 2000 criou uma remuneração mensal para seu cargo. Em janeiro de 2005, o presidente contratou o filho, Guilherme Martorelli, como advogado do sindicato.

Em março de 2020, o sindicalista propôs que a assembleia da entidade aprovasse um bônus retroativo que, em valores estimados, chega a R$ 3,5 milhões. Ainda em 2020, Martorelli transformou o Sapesp em uma empresa de agenciamento de jogadores e intermediação de transferências, para que possa faturar a partir da negociação de direitos federativos e econômicos. E entrou em conflito com a CBF por isso.

Martorelli foi procurado para comentar todos os pontos levantados e o fez por escrito, com a exigência de que suas respostas fossem publicadas na íntegra. Os trechos mais relevantes serão publicados de maneira editada ao longo desta reportagem.

A TRAJETÓRIA

Como tudo aconteceu? Como Martorelli chegou ao poder e permaneceu por tanto tempo? Como um sindicato quebrado nos anos 1990 virou fonte de renda? Ex-goleiro do Palmeiras nos anos 1980, Martorelli assumiu a presidência do Sapesp em abril de 1993. Numa chapa que tinha Raí na secretaria, Velloso na tesouraria, César Sampaio, Pintado e Wladimir como suplentes, numa época em que o sindicato não tinha dinheiro.

Os sindicatos de jogadores de futebol são responsáveis pela intermediação do direito de arena. Uma parte do dinheiro do futebol – num fluxo que começa a partir das emissoras que compram os direitos de transmissão – não passa pelo caixa dos clubes e federações: 5% são retidos e repassados para os sindicatos, que se responsabilizam por distribuir aos atletas.

Ao longo dos anos, com mudanças nas leis e o crescimento vertiginoso do volume de dinheiro em circulação no futebol, o Sapesp passou a movimentar quantias milionárias. A entidade – que devia três meses de aluguel em 1993 – hoje tem sede própria, paga até carro para o presidente e acumula R$ 47 milhões em caixa.

Os documentos obtidos pelo ge revelam o funcionamento o sindicato – cuja função, segundo a Constituição, é assegurar “a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria”.

O SALÁRIO E O MODUS OPERANDI

Os atos do Sapesp precisam ser aprovados por uma Assembleia Geral convocada por meio de anúncios em jornais. O estatuto da entidade prevê que, “não havendo número legal de associados para instalação de trabalhos em primeira convocação, a assembleia será realizada uma hora depois, no mesmo dia e local, em segunda convocação com qualquer número de associados presentes”.

São Paulo tem mais de 8 mil jogadores profissionais de futebol. Mas aprovar qualquer ato numa assembleia do sindicato não requer quórum mínimo. Um exemplo é a reunião que aprovou a criação do salário presidencial. No dia 28 de março de 2000, sete anos após ter assumido a presidência e já reeleito uma vez, Martorelli convocou uma Assembleia Geral para votar a remuneração mensal para o presidente no valor de 30 salários mínimos – “passando a vigorar a partir de janeiro de 2000”, três meses antes.

A proposta foi aprovada por 56 associados: 31 jogadores da Catanduvense, 16 do Rio Claro – clubes que naquele ano disputaram a quinta divisão do Campeonato Paulista – e mais nove atletas identificados como “avulsos” na sede do sindicato.

Martorelli aprova salário para presidente e tesoureiro no Sapesp - Reprodução
Martorelli aprova salário para presidente e tesoureiro no Sapesp – Reprodução

Em 13 de junho de 2001, uma assembleia formalizou o aumento do salário de Martorelli de 30 para 40 salários mínimos mensais. A ata da reunião afirma que “se auferiu um total de vinte e cinco assinaturas”. O documento registrado em cartório mostra que 12 delas são repetidas. A reportagem identificou apenas 13 assinaturas diferentes.

Quinze anos depois, Martorelli conseguiu aumentar de novo o próprio salário. Uma Assembleia Geral ocorrida em 23 de maio de 2016 registrou o reajuste da remuneração mensal do presidente em 15% sobre o valor vigente. A decisão foi aprovada por 64 jogadores profissionais.

Luiz Fernando Aragão, professor de direito do trabalho da Universidade Candido Mendes, calculou, a pedido do ge, com base nos documentos disponíveis, a evolução do salário de Martorelli à frente do sindicato. Em 2000, o valor mensal era de R$ 4.560, o equivalente a R$ 16 mil em valor presente, corrigido pela inflação. Essa remuneração sempre foi atrelada ao salário mínimo, o que assegura reajustes automáticos anuais. Em 2001, o valor subiu para 40 salários mínimos – R$ 7.200 ao fim daquele ano, cerca de R$ 33 mil em valores atuais.

Em 2016, com o aumento de 15%, o salário de Martorelli chegou a R$ 40.480 por mês. Em 2021, com o valor de referência em R$ 1.100, o salário está estimado em R$ 50.600 mensais.

A reportagem também consultou os peritos contábeis Ivam Ricardo Peleias e Allan Aquino Pereira de Lima, pesquisadores da Fecap (Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado). Os especialistas fizeram o cálculo a partir dos documentos fornecidos, e chegaram ao mesmo valor: R$ 50.600 mensais.

Martorelli falou sobre a questão:

– Entendo a pergunta a respeito do meu salário, porém cumpro com todas as minhas obrigações e reitero aquilo que percebo foi aprovado em assembleia, tenho obrigações com a minha categoria e as cumpro religiosamente. Mais, há que de salientar que o sindicato não recebe nenhuma verba pública, portanto, não há motivo para que eu mostre meu salário – declarou.

Martorelli aumenta salário da presidência após um ano - Reprodução
Martorelli aumenta salário da presidência após um ano – Reprodução

De acordo com Olivia Pasqualeto, professora de Direito do Trabalho da Fundação Getúlio Vargas, “a CLT autoriza o pagamento de uma contraprestação pelo exercício do mandato e estabelece um teto: nunca excedente da importância de sua remuneração na profissão respectiva”. O salário que o Sapesp paga a seu presidente supera em muito a média dos salários pagos para a categoria no Brasil.

De acordo com o estudo “Impacto do Futebol Brasileiro” (na economia do país), elaborado pela consultoria EY e publicado pela CBF em dezembro de 2019, só 3% dos jogadores de futebol do país recebem acima de R$ 50 mil. Por outro lado, 88% dos atletas profissionais têm salários abaixo de R$ 5 mil mensais. Na presidência do sindicato paulista, Martorelli tem um salário que só a elite do jogo alcança no futebol brasileiro.

O controle de Martorelli sobre o sindicato é tão grande que ele conseguia aprovar retroativamente atos que já tinha realizado. Um exemplo banal, transcrito aqui a partir da ata da Assembleia Geral de 13 de maio de 2011:

– O outro tema foi o da transferência do veículo Fiat Uno, ano 2006 […]. O presidente do Sapesp explicou que o veículo havia sido recebido através de doação e que estava perdendo muito seu valor comercial, além, e principalmente, de não atender às necessidades do sindicato e que o melhor a fazer seria a venda. Explicou que isso já havia acontecido pela oportunidade ocorrida em 13 de maio de 2010 quando se concretizou a transferência no valor de R$ 15 mil. Dito isso, pediu o referendo da assembleia para que ratificasse e aprovasse a posição da diretoria.

Ou seja, Martorelli vendeu um carro do sindicato um ano antes de pedir a aprovação da Assembleia Geral para vendê-lo. Um ano depois de fechado, o negócio foi aprovado por unanimidade. Em 20 de dezembro de 2018, Martorelli foi mais uma vez reeleito presidente do Sapesp. Segundo documentos do próprio sindicato, havia 8.513 atletas aptos a votar, mas só 91 compareceram – 1,07% do total.

– A baixa representatividade coloca em xeque a credibilidade das decisões aprovadas na assembleia e não afasta o direito de os representados questionarem as decisões. Por outro lado, se elas observam a lei e o estatuto do sindicato, não haveria irregularidade – comenta a advogada Luciana Gonzalez, especialista em direito do trabalho.

Martorelli aumenta seu próprio salário no sindicato paulista - Reprodução
Martorelli aumenta seu próprio salário no sindicato paulista – Reprodução

Questionado sobre o baixo comparecimento da categoria às assembleias gerais em que decisões tão importantes são tomadas, Martorelli respondeu:

– Todas as nossas assembleias, além de duas publicações em jornais, também vão para essas plataformas. Ainda, os capitães dos clubes próximos são avisados via WhatsApp. Se pesquisar vai ver várias fotos desses encontros. Evidente que queríamos muito mais participações, mas delas participam os que têm interesse.

O BÔNUS RETROATIVO

Em 9 de março de 2020, uma Assembleia Geral do Sapesp aprovou o pagamento de um bônus financeiro para a presidência”. Na prática, Martorelli pediu – e conseguiu – autorização para receber do sindicato uma indenização estimada pelo professor Luiz Fernando Aragão, da Universidade Candido Mendes, em aproximadamente R$ 3,5 milhões por “direitos trabalhistas”.

O presidente aprovou essa bonificação para si mesmo diante de uma plateia de apenas 78 atletas – menos de 1% do número de jogadores profissionais registrados no Estado de São Paulo.

A conta apresentada por Martorelli incluía seus 27 anos de atuação na entidade até então, desde 1993, e os quatro anos que faltavam para o fim de seu mandato, que vai até 2024. O pagamento deveria ser feito em quatro parcelas: a primeira em maio de 2020, as demais a cada três meses.

Por meio do bônus, Martorelli recebeu de uma vez valores de décadas passadas e a antecipação de quatro anos de férias, 13º salário e FGTS. O bônus financeiro pago a ele em 2020 foi de R$ 3,48 milhões – dos quais R$ 1,99 milhão referente a férias e R$ 1,49 milhão em FGTS. A Assembleia Geral aprovou o pagamento do valor em quatro prestações.

Martorelli apresentou o bônus como uma compensação por férias não pagas. Assim, conforme ficou registrado em ata, o pagamento de imposto de renda não deveria ser feito por ele, mas, sim, pelo Sindicato dos Atletas de São Paulo. Ao ge, Martorelli justificou o pagamento como “prática de todo o setor corporativo”.

– Quanto ao bônus, é prática de todo o setor corporativo quando os resultados financeiros são satisfatórios e, no meu caso, como o trabalho é vencedor e extremamente superavitário, vem ajustar minimamente uma parte do período de dedicação a representação da categoria em que, além de não ter nenhum retorno financeiro, ainda utilizava dos meus recursos para que o sindicato paulista pudesse se manter ativo. Essa é uma ação que acontece, inclusive, com os executivos da empresa que o senhor presta serviços. Quando os resultados são positivos, os executivos recebem a bonificação – afirmou.

Martorelli aprova uma indenização para si mesmo e chama de bônus - Reprodução
Martorelli aprova uma indenização para si mesmo e chama de bônus – Reprodução

O SINDICATO COMO AGENTE

No início de 2020, Rinaldo Martorelli comprou um barulho com a CBF. Martorelli pediu formalmente à confederação para o sindicato ser reconhecido por ela como empresa de agenciamento de jogadores. A entidade recusou o pedido e baseou a negativa no artigo 564 da CLT, que diz:

– Às entidades sindicais, sendo-lhes peculiar e essencial a atribuição representativa e coordenadora das correspondentes categorias ou profissões, é vedado, direta ou indiretamente, o exercício de atividade econômica.

O sindicalista não aceitou. Martorelli defendeu que existe diferença entre atividade econômica e recursos para a manutenção do sindicato. E levou a questão para a categoria. Na mesma assembleia em que aprovou seu bônus, em 9 de março de 2020, ele aprovou por unanimidade a criação de uma “agência de colocação”. Em defesa da ideia, ele fez críticas à CBF. Seu discurso, segundo o documento, foi o seguinte:

– […] O que na verdade ocorre é que o sindicato cobra da CBF uma postura para reorganizar o futebol no país e que, politicamente, mostra que a gestão da maior entidade do futebol resulta em um trabalho ruim, que não cuida do futebol, tampouco da categoria – disse Martorelli.

Procurada pela reportagem, a CBF confirmou que recusou o pedido feito pelo sindicato. A confederação não entrou em detalhes sobre o caso.

A questão divide especialistas em direito do trabalho consultados pela reportagem. Na avaliação de Luiz Fernando Aragão, da Universidade Candido Mendes, o sindicato não poderia criar essa agência.

– Ele estaria transformando a entidade sindical numa entidade com fim lucrativo. Isso é proibido – diz o professor.

Para Olivia Pasqualeto, da FGV, a questão é controversa.

– O artigo 513 da CLT diz que sindicatos podem criar e manter agências de colocação. A discussão se dá pela “cobrança”, o que é vetado pelo artigo 564. Mas há autores que entendem que, se a atividade for revertida em prol dos interesses da categoria, seria possível exercê-la.

Martorelli declarou ao ge que “infelizmente” o sindicato ainda não intermediou nenhuma transferência. E deu a sua versão.

– E um dos motivos pelo qual ainda não se iniciou esse trabalho foi porque a CBF não nos deu, por pura retaliação, a certificação para que pudéssemos ter a garantia quanto aos recebimentos. Retaliação essa, fruto de um posicionamento firme em defesa da categoria, coisa que a Fenapaf, do presidente destituído, jamais fez. Mas posso garantir que isso logo será resolvido e iniciaremos esse trabalho tão importante para a categoria.

Martorelli é, ele próprio, dono de uma agência de intermediação de jogadores, chamada RGM Sports, em sociedade com um de seus filhos, Gustavo Martorelli. A empresa foi fundada em dezembro de 2011.

Hoje, a empresa tem situação cadastral de “inapta”. Na ficha de seu CNPJ, o motivo alegado é “omissão de declarações”. No sistema de intermediários da CBF, a RGM Sports também não aparece como autorizada a prestar qualquer tipo de serviço de intermediação ou representação no futebol brasileiro.

– Certamente, do ponto de vista do compliance, este tipo de relação não seria recomendada, justamente para evitar favorecimentos – opina Luciana Gonzalez, advogada especialista em direito do trabalho.

O CARGO PARA O FILHO

Gustavo não é o único filho que Martorelli levou para o mundo do futebol. Guilherme Martorelli advoga para o sindicato presidido pelo pai desde janeiro de 2005. A data consta do perfil que o próprio profissional montou em uma rede social.

Guilherme é um nome frequente em atas de assembleia e demais documentos. Ele também preside um instituto, o Ibradespor, que tem relação com sindicato. Questionado sobre o fato de ter contratado o próprio filho para ocupar uma diretoria do sindicato que ele preside desde 1993, Martorelli respondeu:

– Seria nepotismo se ele recebesse e não trabalhasse. Vamos lá, ele iniciou há bastante tempo o trabalho, em 2005, mas sempre respeitando os critérios de mérito e antiguidade. Começou como estagiário, depois da obtenção da carteira da Ordem dos Advogados iniciou o trabalho como advogado e agora é nosso coordenador jurídico, sempre recebendo salário de mercado. Ele administra 337 processos de atletas pelo sindicato e somente em um deles recuperou para o sindicato, numa troca com a Fenapaf de ação de exigir contas, quatro milhões e trezentos e cinquenta mil reais, valor ainda a ser corrigido porque ainda não foi recebido. É graduado em direito, pós-graduado em direito do trabalho, pós-graduado em processo do trabalho, pós-graduado em direito civil, pós-graduado em processo civil e mestre em direito desportivo internacional. Será que está qualificado para o trabalho?

A FORTUNA

Com o crescimento do futebol, turbinando os direitos de arena, Martorelli percebeu que poderia ampliar a receita de outra maneira: por meio do mercado financeiro. Em vez de repassar os direitos de arena imediatamente aos jogadores, o sindicato passou a reter parte do valor para fazer aplicações.

Em 2018, segundo o balanço do sindicato, houve um “faturamento” de R$ 6 milhões, dos quais R$ 3,4 milhões são oriundos do direito de arena e R$ 2,6 milhões em juros sobre aplicações financeiras. Contribuições sindicais e associativas são irrelevantes no cálculo.

As receitas do Sapesp - Reprodução

Uma vez que um sindicato não possui o lucro como finalidade, pois em teoria existe apenas para defender os interesses da categoria, todo o dinheiro que entra por um lado precisa ser gasto no outro.

E como esse dinheiro é gasto? A estrutura do sindicato paga salários, benefícios, manutenção de edifícios, verbas de representação e verbas para divulgação. No caso do custo com “pessoal”, que inclui salários e benefícios trabalhistas da diretoria e dos funcionários, o Sapesp fez com que a despesa quase dobrasse em um intervalo de quatro anos.

Salários e benefícios

  • R$ 1,3 milhão em 2016
  • R$ 1,7 milhão em 2018
  • R$ 2,2 milhões em 2020

Na “verba de representação”, os gastos também são direcionados para as pessoas que comandam o sindicato. Incluem gratificações, viagens e hospedagens, solenidades e homenagens. Reuniões custam caro.

Verbas de representação

  • R$ 1,2 milhão em 2016
  • R$ 1,6 milhão em 2018
  • R$ 1,6 milhão em 2020

Também se destaca a despesa com “assessorias”. Neste item, estão incluídas empresas de quatro segmentos diferentes: auditoria, jurídica, empresarial e de imprensa. Esse gasto quintuplicou em quatro anos.

Assessorias

  • R$ 500 mil em 2016
  • R$ 1,9 milhão em 2018
  • R$ 2,4 milhões em 2020
As despesas do Sapesp - Reprodução

Sobre os aumentos nas despesas, Martorelli os justificou com a inflação brasileira e com a pandemia do coronavírus.

– Com o volume de trabalho apresentado, não é difícil chegar à conclusão de que os custos tendem sempre a aumentar. Não vivemos em um país onde o custo das coisas se mantém estável. Ainda há que se considerar que no ano de 2020, especificamente, nós tivemos que acrescentar ao custo do sindicato os recursos que foram empregados em auxílio aos atletas – escreveu o sindicalista.

O valor apresentado na tabela anterior em relação a 2020 consta do orçamento do sindicato. Ele corresponde a uma previsão feita pela própria entidade ainda no término de 2019. Quando ainda não havia sinal de que uma pandemia afetaria a economia global. Além disso, a inflação no Brasil desacelerou justamente no período entre 2016 e 2020.

Apesar dos gastos expressivos – maiores até do que as receitas, com prejuízos registrados nos últimos anos –, ao longo das décadas o sindicato paulista enriqueceu e acumulou patrimônio.

No balanço financeiro mais recente disponível, com fechamento em 31 de dezembro de 2018, o sindicato fechou o ano com quase R$ 47 milhões em contas bancárias ou aplicações financeiras. Mesmo com essa quantia disponível, a entidade reconheceu em seu balanço que possui mais de R$ 38 milhões em dívidas com atletas por causa do não repasse dos direitos de arena.

Perguntado sobre esse ponto, Martorelli repassou uma explicação prestada pelo contador do sindicato. O profissional afirmou que os valores que constam do passivo são “correntes”, ou seja, dizem respeito a obrigações do mês de dezembro que são pagas apenas em janeiro do ano seguinte, no quinto dia útil. Em português mais simples: não são dívidas no sentido popular da palavra.

Este esclarecimento está tecnicamente errado. Dos R$ 38 milhões registrados no passivo, R$ 17 milhões foram contabilizados no “não circulante”. Isso significa que o seu prazo de pagamento é superior a um ano. É impossível que despesas correntes sejam classificadas em tal prazo.

A dúvida então é: por que o Sapesp deixa de repassar valores a atletas, dívida que ele mesmo reconhece no balanço financeiro da entidade, se há dinheiro nas contas do sindicato?

Os balanços patrimoniais do Sapesp são assinados por três pessoas: Rinaldo Martorelli, na condição de diretor-presidente; Luiz Eduardo Pinella, diretor-tesoureiro; e Mario Alberto Maino, contador.

Os documentos acompanham pareceres positivos do Conselho Fiscal, este, por sua vez, formado por: Geraldo Jaime Correa Filho, José Maria Cervi e Julio César Oliveira Bonfim. Não há nenhum parecer de auditoria externa.

O CENTRO DE LAZER

Em 1998, sem condições de bancar a manutenção e com uma dívida em IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), o sindicato vendeu por R$ 170 mil, em valores da época, um terreno do sindicato dos atletas em Praia Grande, no litoral paulista, doado na década de 1960 pelo Estado de São Paulo para a construção de uma colônia de férias para a categoria.

A venda chegou a ser questionada recentemente pelo Conselho do Patrimônio Imobiliário de São Paulo por se tratar de uma área doada com objetivo específico, mas o caso foi arquivado porque a Justiça entendeu que o prazo de reclamação já tinha se esgotado.

O Sapesp hoje planeja levantar em Peruíbe, também no litoral de São Paulo, o que chama de Centro de Lazer e Treinamento. Em seu site, os responsáveis afirmam que se trata de área de 190 mil metros quadrados e de um projeto “idealizado para atender atletas e seus familiares para um descanso de final de semana ou de férias, e para os atletas que precisam manter a forma mental e física”. Segundo o balanço de 2016, o local estava avaliado em R$ 2,5 milhões.

O DIREITO DE ARENA

A grande virada dos sindicatos de jogadores de futebol aconteceu nos anos 2000. A lei de então previa que os atletas receberiam 20% do arrecadado pelos clubes como direito de arena. Mas essa verba não era repassada. Alguns sindicatos, como o paulista, o carioca e o gaúcho, foram à Justiça. A briga gerou um acordo que fixou em 5% o percentual dos direitos de arena – com uma importante diferença: esse percentual seria pago pelas emissoras diretamente aos sindicatos.

O acordo se tornou regra “informal” por um período. A legislação só foi alterada em 2011, quando a Lei Pelé decretou os 5% – o que levou uma série de atletas a cobrar a diferença de 15% entre 2000 e 2011 na Justiça do Trabalho.

Para os sindicatos, no entanto, o acordo foi excepcional. Eles deixaram a penúria. E o Sapesp ainda fez mais: instituiu uma taxa de administração desse dinheiro de 10%. Uma cobrança vista como irregular por especialistas. Martorelli diz que a taxa é legal:

– É legalíssima a existência da taxa de administração. Essa questão fez parte do próprio acordo no processo que garantiu o direito de arena ao atleta, sendo que sua ratificação e aprovação se deu, pela primeira vez, na assembleia que deliberou positivamente sobre a possibilidade do acordo estabelecido na ação judicial ordinária de cobrança, ocorrida em 18 de agosto de 2000 e reiterada em outras assembleias no decorrer desse período de repasses

Como exemplo do volume de dinheiro que passou pelo sindicato, em processos contra Corinthians, Palmeiras e São Paulo, o Sapesp afirma que, entre 2011 e 2016, recebeu R$ 69 milhões em direitos para repassar a atletas.

Em 2016, um caso chama atenção. O sindicato recebeu R$ 15 milhões das emissoras e não repassou aos jogadores. A alegação foi que o percentual se referia a luvas e deveria beneficiar a categoria como um todo.

A proposta para reter o valor foi aprovada numa assembleia de maio de 2016. Jogadores que assinaram a lista de presença da assembleia disseram não ter participado da votação, supostamente realizada no mesmo dia de um evento educacional promovido pelo Sapesp. A ata informa que 64 atletas aprovaram a retenção dos R$ 15 milhões. Nenhum jogava a primeira divisão paulista. Um deles defendia um clube no Ceará. (Globo Esporte)