A tese do marco temporal, que limita as demarcações de territórios tradicionais, beneficia um grupo de grandes fazendeiros autuados por infrações ambientais e que se apossaram de áreas da Terra Indígena Batelão, no norte de Mato Grosso.
Entre os ocupantes do território, considerado o berço dos indígenas kawaiwetes —os kayabis, como são conhecidos—, estão o prefeito de Lucas do Rio Verde (MT), Miguel Vaz Ribeiro, e um antecessor dele no cargo, Marino José Franz. Ambos são filiados ao Cidadania.
Lucas do Rio Verde está a 285 km de Tabaporã, a cidade mais próxima da terra indígena.
Quando foi eleito em 2020, Ribeiro declarou ter um patrimônio de R$ 131 milhões. Na lista de bens está a Fazenda São Jorge, que fica na terra Batelão, segundo processo na Justiça movido pelos próprios fazendeiros para tentar anular eventual definição do território como indígena. À Justiça Eleitoral, o então candidato disse que dois terrenos no lugar valiam R$ 52,5 mil.
Franz, que exerceu o cargo de prefeito de Lucas do Rio Verde anteriormente, é um dos donos da Fiagril, uma produtora de grãos com capital social de R$ 626,8 milhões, segundo registros da empresa na Receita Federal.
Tanto o atual prefeito quanto o ex-gestor foram autuados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) por infrações ambientais.
A disputa pelo Batelão envolve ainda outros quatro grandes produtores rurais que são apontados como autores de infrações ou crimes ambientais.
A reportagem questionou a defesa dos seis produtores rurais, incluídos o prefeito e o ex-prefeito, e não houve resposta até a publicação.
Ao todo, a briga na Justiça contra os kayabis envolve 25 grupos de pessoas físicas e jurídicas. Eles ocupam terrenos no território, que tem 117 mil hectares, e dizem ter comprado os imóveis rurais após a expulsão dos indígenas do lugar.
No último dia 3, a Folha mostrou que o vice-prefeito de Sinop, Dalton Benoni Martini (PTB), tem fazendas na terra Batelão há mais de 30 anos. Ele mantém fazendas em partes do território desde o início da década de 90, entrou na Justiça com uma ação de usucapião e se dedica a criar gado, plantar soja e milho e explorar madeira na área de vegetação amazônica.
Martini é um dos 25 que tentam garantir na Justiça a posse dos terrenos. A reportagem obteve os documentos dos processos em curso, o que permitiu identificar quem são os produtores rurais e empresas que estão explorando o Batelão, o berço dos kayabis.
Todos eles podem se beneficiar da tese do marco temporal, caso ela seja considerada válida. Por essa tese, os indígenas têm direito a um território tradicional se estavam no lugar no momento da promulgação da Constituição, em outubro de 1988.
A tese ignora situações de conflito e expulsões corriqueiras de indígenas para outros territórios, exatamente como ocorreu com os kayabis.
Na década de 1940, o governo de Mato Grosso passou a vender ilegalmente pedaços de terra a quem quisesse explorar a área. Na década de 1960, em razão de sucessivas invasões e confrontos, principalmente com seringueiros, uma parcela dos kayabis foi levada pelos irmãos sertanistas Villas-Bôas ao Território Indígena do Xingu, sem consenso e sem aceitação por parte das famílias.
Alguns resistiram e permaneceram em terras próximas do Batelão, usadas para caça, pesca e coleta de material para confecção de arco, flecha e peneira. Muitos fizeram o movimento de volta, do Xingu a essas áreas.
Nas décadas seguintes, produtores rurais passaram a ocupar e a desmatar o Batelão. Os kayabis querem retomar o território, como constatou a reportagem em contato com os indígenas nas aldeias mais próximas.
Pela tese do marco temporal, os fazendeiros, que dizem ter comprado as áreas, teriam mais chances de garantir a posse dos terrenos já explorados.
No último dia 30, a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que valida o marco temporal, uma das prioridades da bancada ruralista no Congresso. O texto ainda precisa ser analisado e votado no Senado.
Ao mesmo tempo, o STF (Supremo Tribunal Federal) analisa a constitucionalidade da tese.
Já votaram contra o marco temporal os ministros Edson Fachin, relator do processo, e Alexandre de Moraes. O voto de Moraes foi proferido em plenário no dia 7, quando o ministro André Mendonça pediu vista e suspendeu o julgamento. Kássio Nunes Marques votou a favor do marco temporal.
Na Terra Indígena Batelão, os kayabis não estão mais presentes. Fazendeiros se apossaram do lugar, com vastas plantações de soja e milho e criação de gado.
Em setembro de 2016, o juiz federal Cesar Augusto Bearsi, da 3ª Vara Federal em Cuiabá, proferiu decisão em que considerou a terra Batelão como sendo de ocupação tradicional dos kayabis. Por isso, conforme a sentença, os títulos de propriedade dos fazendeiros presentes na área devem ser declarados nulos.
A decisão estabeleceu ainda a necessidade de que a União pague pelas benfeitorias feitas nas fazendas, em razão de alegada boa-fé no desenvolvimento das propriedades rurais. Essas indenizações chegariam a R$ 123,3 milhões, pelos valores de 2016.
Os fazendeiros contestam a decisão em instâncias superiores na Justiça.
As benfeitorias na fazenda do prefeito e do ex-prefeito de Lucas do Rio Verde valem R$ 12,3 milhões, conforme citado na sentença de 2016.
Em 2019, o Ibama multou Miguel Ribeiro por construção de dique e adutora de concreto sem autorização de órgão ambiental, inclusive dentro do Parque Nacional da Chapada dos Guimarães. Marino Franz foi multado em 2015 pelo órgão ambiental por executar manejo florestal sem autorização.
Já o produtor Edson Melozzi, também com propriedade na área do Batelão, foi multado pelo Ibama em 2009, por fogo indevido.
Elpídio Daroit foi multado em mais de R$ 3 milhões por desmatamento ilegal em área de Amazônia na região de Nova Ubiratã (MT), em 2013, mesmo ano em que teve uma área de 636 hectares embargada pelo Ibama pela mesma causa.
Outra ocupante do Batelão é a Sinopema Indústria e Comércio de Madeiras. Em 2019, a empresa precisou fazer um TAC (termo de ajustamento de conduta) com o MP (Ministério Público) de Mato Grosso em razão de irregularidades no CAR (Cadastro Ambiental Rural).
Conforme o MP, a Sinopema precisava apresentar documentos que autorizassem a permanência da fazenda em sobreposição à terra indígena ou excluir a matrícula sobreposta ao Batelão.
Fonte: MidiaNews