Em 1909, um ano após o voo histórico do 14 Bis, Alberto Santos Dumont desenvolveu o Demoiselle, primeiro avião de sua autoria a ser fabricado em série. O nome, que significa “donzela” em francês, foi escolhido tanto pelo tamanho delicado do avião quanto pela forma graciosa com que ele se movia pelo ar, lembrando as libélulas, chamadas de “demoiselles” na França.
Mais de um século depois, uma nova espécie de libélula brasileira recebeu o mesmo nome em homenagem ao inventor. A espécie Cyanallagma demoiselle foi descrita na revista científica International Journal of Odonatology por pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
“O que fizemos, de certa forma, foi homenagear com o nome de uma libélula a homenagem de Santos Dumont às próprias libélulas”, comentou Emanuella Denck, bolsista de iniciação científica e autora do estudo, em comunicado.
A descoberta é resultado de um trabalho que começou há cerca de dez anos, quando o professor Ângelo Parise Pinto, coordenador do Laboratório de Sistemática de Insetos Aquáticos (Labsia), da UFPR, coletou os primeiros exemplares no Parque Estadual da Ilha do Cardoso, em São Paulo.
A Cyanallagma demoiselle trata-se de um inseto de asas finas e translúcidas, que, sem pigmentação, permitem a passagem da luz, assemelhando-se às asas nervuradas do avião de Santos Dumont. Além disso, o inseto apresenta um dimorfismo sexual: os machos possuem coloração azul-esverdeada, enquanto as fêmeas têm tons mais esverdeados. “Não é uma exceção na família à qual ela pertence, mas forma um padrão bastante bonito”, afirmou Pinto.
Outro aspecto da nova espécie é sua “mistura” de características com outras libélulas do gênero Cyanallagma. A Cyanallagma demoiselle combina traços de várias espécies, como a cor e a forma dos apêndices na parte mais alta do abdômen. “Chamou a atenção que ela apresenta estruturas muito similares às de outras espécies, mas de forma misturada, como uma espécie de quimera”, explicou Denck.
A donzela é parte de um grupo de insetos aquáticos que desempenham papel essencial no equilíbrio dos ecossistemas. Predadores naturais de invertebrados e até de pequenos peixes e anfíbios, as libélulas ajudam a controlar populações de outras espécies e a garantir a estabilidade dos ecossistemas em que vivem.
A Cyanallagma demoiselle e outros insetos aquáticos funcionam como “bioindicadores da qualidade da água e da saúde geral dos ecossistemas”, afirmou Juliana Ehlert, pesquisadora do estudo. A presença ou ausência deles pode revelar muito sobre a saúde do meio ambiente.
,O projeto do Labsia responsável por identificar essa e outras novas espécies de libélulas, tem como objetivo ampliar o conhecimento sobre os insetos e invertebrados da Mata Atlântica. Trata-se de um dos biomas mais ricos e ameaçados do planeta, onde espécies desconhecidas ainda podem ser descobertas. A linha de pesquisa também foca em ordens com poucas espécies conhecidas, como os aracnídeos conhecidos como opiliões e os efemerópteros, ou efêmeros, que têm estágios aquáticos de vida.
“Há uma tendência em fazer distinção dos representantes da subordem Zygoptera que são mais delgados, geralmente de voo menos possante e com olhos bastante separados no topo da cabeça, dos Anisoptera, que são libélulas mais robustas, com voo possante e, a maioria, com os olhos em contato dorsalmente”, explicou Pinto. Em inglês, a separação é mais clara: libélulas maiores são chamadas de “dragonflies” enquanto as mais delicadas, como as donzelinhas, são “damselflies”.
Com uma linhagem de mais de 320 milhões de anos, as libélulas já passaram por inúmeras adversidades ao longo da evolução. São herdeiras de um dos primeiros grupos de animais a conquistar os céus, e sobreviveram a eventos catastróficos como a extinção dos dinossauros.
Contudo, essas criaturas, que mudaram pouco desde que apareceram na Terra, enfrentam agora novas ameaças. A degradação ambiental e as mudanças climáticas colocam em risco até mesmo esses insetos que há tanto tempo sobrevivem. “Elas mudaram muito pouco nesses pelo menos 325 milhões de anos. Gosto de brincar que é uma das maquininhas mais bem-sucedidas geradas pela evolução biológica”, observou Pinto.
A descoberta ainda reitera a importância de proteger os ecossistemas que abrigam esses insetos. “A ideia de que alguns insetos sejam mais resilientes do que outros a catástrofes devido às ações humanas, com os eventos das mudanças climáticas, pode ser bastante enganosa e deve ser observada com cautela”, alertou Pinto.
(Redação Galileu)