Em excepcional matéria assinada pelos jornalistas Tariq Panja e Rory Smith, o NY times revelou os bastidores do fim da polêmica Superliga europeia. A iniciativa de 12 clubes gigantes do Velho Continente foi anunciada de surdina na noite do último domingo em meio a traições, ganância, vazamentos e mentiras entre poderosos dirigentes e causando um terremoto no futebol mundial. Um terremoto intenso, porém curto.

Afinal, na terça-feira, dois dias depois do anúncio e após enorme pressão de governos, Fifa, Uefa, torcedores, imprensa e jogadores (até dos próprios clubes participantes), uma debandada geral dos fundadores (ou dissidentes) pôs fim ao projeto encabeçado por Florentino Pérez e Andrea Agnelli, presidentes de Real Madrid e Juventus, respectivamente.

Mas como tudo surgiu tão rápido e acabou mais rápido ainda?

Vazamento

Na última quinta-feira, dia 15, Javier Tebas, presidente da federação espanhola de futebol, e Joan Laporta, presidente do Barcelona recém-empossado, tinham um encontro marcado. Tebas queria parabenizar o dirigente, mas acabou ouvindo dele que o Barcelona estava se juntando a outros clubes gigantes da Europa para a formação de uma liga independente e fechada. Uma ideia que não era exatamente nova, mas que Tebas levou mais a sério por conta do tom de Laporta. O cartola culé disse que 12 clubes já estavam comprometidos e que vários outros tinham até o final de semana para decidir.

Tebas, prontamente acabado o encontro, passou a mão no telefone e falou com diversas federações, alguns clubes e, claro, com Alexsander Ceferin, o esloveno presidente da Uefa. Uefa que, obviamente, seria a mais prejudicada com a Superliga, concebida (natimorta, olhando agora em retrospectiva) para substituir a Champions League.

Traição entre compadres

Ceferin ficou perplexo. Afinal, Andre Agnelli, bilionário italiano presidente da Juventus e até então presidente da associação europeia de clubes, garantiu um dia antes que rumores sobre “ideias separatistas” eram apenas boatos e também assegurou apoio à mudança no regulamento da Liga dos Campeões para depois de 2024. Mudança que viria a ser aprovada na segunda-feira durante congresso da Uefa.

Mesmo assim, Ceferin, advogado conceituado de 53 anos e ex-soldado na Guerra dos Balcãs, resolveu tirar a prova dos nove e, no sábado pela manhã, ligou para Agnelli, cujo filho mais novo tem como padrinho justamente quem? Ele mesmo, Ceferin!

Em um primeiro momento, o compadre não atendeu. Ceferin, então, mandou uma mensagem para a esposa de Agnelli perguntando se ela poderia fazer com que o chefão da Juventus de 45 anos ligasse para ele com urgência. TRÊS HORAS DEPOIS, o celular do dirigente esloveno tocou. Despreocupadamente, Agnelli garantiu a Ceferin, mais uma vez, que estava tudo “sossegado”.

Ceferin sugeriu que emitissem um comunicado conjunto que encerraria a questão. Agnelli concordou. Ceferin redigiu então uma declaração e a enviou a Agnelli, que pediu mais tempo para enviar uma versão corrigida. Os dois compadres trocaram algumas ligações, com Agnelli pedindo mais tempo até que, depois de algum tempo, ele SIMPLESMENTE DESLIGOU O TELEFONE.

Ceferin recebeu mais duas ligações que deixaram claro que a Superliga era real. Duas equipes, uma inglesa e outra espanhola (provavelmente Manchester City, primeiro clube a debandar, e Atlético de Madrid), disseram que foram pressionadas a fazer parte da “dissidência”. Ambos disseram que queriam aceitar, mas também queriam manter uma boa relação com a Uefa. Ceferin respondeu educadamente de que os rebeldes sofreriam consequências (como fez publicamente).

Desunião entre os “Doze sujos”

No domingo pela manhã, antes do anúncio oficial, Ceferin sabia o nome exato dos 12 fundadores, que segundo o NY Times foi chamado de “Os Doze Sujos” pelo dirigente da Uefa.

No entanto, os “cascões” da Superliga não tinham a mesma relação de igualdade. Executivos do Manchester City e do Chelsea, por exemplo, só souberam na sexta-feira, dia 16, que o plano estava em andamento. Florentino e Agnelli disseram que eles não tinham mais do que um dia para decidir se entrariam ou não.

Da esquerda para a direita, de cima para baixo: Florentino Perez, Joan Laporta, Enrique Cerezo, Andrea Agnelli, Steven Zhang, Ivan Gazidis, Stan Kroenke, Joel Glazer, John W Henry, Daniel Levy, Roman Abramovich e Ferran Soriano. — Foto: AFP

Da esquerda para a direita, de cima para baixo: Florentino Perez, Joan Laporta, Enrique Cerezo, Andrea Agnelli, Steven Zhang, Ivan Gazidis, Stan Kroenke, Joel Glazer, John W Henry, Daniel Levy, Roman Abramovich e Ferran Soriano. — Foto: AFP

Convidados para a festa, PSG e Bayern não aceitaram e enviaram informações para as federações da Espanha, Itália e Inglaterra, além da Uefa, para que elas preparassem um contra-ataque. A Uefa chegou a preparar um comunicado rebatendo a iniciativa, mas a notícia do anúncio da Superliga acabou vazando no próprio domingo. E aí aconteceu o que alguns dos “dissidentes” temiam: imprensa, jogadores, técnicos e torcedores foram totalmente contra a ideia.

“Não é hora de fazer isso”, alertou um executivo envolvido no projeto segundo o NY Times. O executivo sugeriu esperar até o verão europeu para fazer o anúncio.

Também havia a preocupação de que a estratégia de comunicação da Superliga estava muito focada em ganhar apoio governamental, em vez do apoio popular e da mídia. Não houve nenhum esforço para consultar, envolver ou conquistar torcedores, jogadores ou treinadores.

Mas Agnelli estava pressionado por ser um agente duplo. Mantinha em segredo informações da Superliga, ao mesmo tempo que conversava com a Uefa (e com seu compadre Ceferin). E com as assinaturas dos clubes na mão, além das garantias financeiras (e investimentos bilionários) por parte do banco americano JP Morgan, ele quis logo fazer o anúncio. Mesmo pensamento de Joel Glazer, um dos proprietários do Manchester United, que também desejava que tudo fosse logo divulgado.

E às 23h de domingo (horário britânico), veio o anúncio da criação da Superliga, publicado simultaneamente nos sites das 12 equipes (Real Madrid, Barcelona, Atlético de Madrid, Inter de Milão, Juventus, Milan, Tottenham, Chelsea, Liverpool, Manchester City, Manchester United e Arsenal). Mas, a essa altura, a narrativa de que o projeto foi impulsionado pela ganância de alguns clubes ricos e seus líderes havia tomado forma.

“(O projeto) já estava morto às 23h10”, disse outro executivo envolvido na Superliga.

Se não morreu exatamente 10 minutos depois do anúncio, a Superliga foi dessa para melhor dois dias depois. Sim, a competição pode ser ressuscitada se depender da vontade de Florentino Pérez, por exemplo. Mas a estrutura do futebol europeu foi abalada, não somente no relacionamento entre os 12 dissidentes com Uefa ou Fifa, mas dentro desses próprios clubes.

Segundo o NY Times, o plano havia sido mantido em segredo até mesmo de executivos de alto nível – “Era uma questão resolvida entre proprietários e donos”, disse um executivo de uma das equipes envolvidas – e havia poucos avisos do que estava por vir. Em alguns clubes, um e-mail de todos os funcionários apareceu pouco antes do comunicado ser divulgado. (Globo Esporte)