Sob a luz dos holofotes da Copa do Mundo que acontece na Lituânia, o futsal vive um momento controverso no Rio de Janeiro, onde a legitimidade dos resultados do principal campeonato da modalidade está em xeque por conta de suspeitas de um esquema de apostas e manipulação de placares. O problema enraizado há tanto tempo no campo, com exemplos que vão da Máfia do Apito até casos mais recentes, ao que tudo indica migrou para o salão.

A Polícia Civil, por meio da Delegacia de Defraudações, abriu inquérito para apurar o caso. Mas, no momento, a investigação mais avançada é a do Tribunal de Justiça Desportiva de Futebol de Salão do Rio (TJDFS-RJ), que ouviu 12 pessoas nos últimos dias e começou a desvendar o organograma da fraude. O prazo para entrega do relatório final é até a primeira semana de outubro – só então a Procuradoria apresentará denúncia para que os responsáveis sejam julgados e eventualmente punidos no âmbito desportivo. No criminal, caberá à polícia.

O processo investigatório do TJD toma como ponto de partida a delação de um dirigente do Esporte Clube Rio São Paulo, que confessou ter combinado com seus jogadores de facilitarem o resultado de ao menos uma partida na competição. Ele optou pelo benefício da transação disciplinar e entregou ao tribunal detalhes preciosos de como se dava o esquema de apostas, com nomes, atribuições e modus operandi. Em troca, recebeu uma pena mais branda: suspensão por 45 dias de qualquer atividade relacionada ao futsal e exclusão da equipe da atual edição do Campeonato Carioca.

Ele contou duas vezes ao TJD, uma na transação disciplinar e outra já durante o inquérito, que o cabeça do esquema é Jean Carlos Pereira Costa, ex-jogador do Vasco e campeão da Taça Brasil em 2013 pelo Corinthians. Com o auxílio do irmão Ramon Pereira Costa, atleta do Arpão Esporte Clube, ele seria o encarregado de captar apostadores com o conhecimento prévio dos resultados, e parte do dinheiro recolhido em troca dessas informações seria usada para pagar os atletas em quadra.

Padrasto de Jean e Ramon, Paulo Roberto Veltri, técnico do Arpão, também estaria envolvido na fraude: ele é apontado nas investigações como o responsável por aliciar os atletas, fazendo-se valer do fato de conhecer a maioria dos salonistas do Rio já que atua no esporte há mais de três décadas. Ainda foi mencionada a existência de um sócio-investidor, cuja identidade e papel dentro dessa estrutura o inquérito está tentando descobrir.

Ao ge, Paulo Veltri negou envolvimento com qualquer tipo de atitude ilícita (veja o que o treinador disse mais abaixo). Jean e Ramon não responderam às tentativas de contato.

Jean Carlos, jogador de futsal do Luxol (de Malta), e seu padrasto Paulo Veltri, técnico do Arpão, são apontados por testemunhas como responsáveis pelo esquema  - Infoesporte
Jean Carlos, jogador de futsal do Luxol (de Malta), e seu padrasto Paulo Veltri, técnico do Arpão, são apontados por testemunhas como responsáveis pelo esquema – Infoesporte

– São pessoas covardes, que demandam um total desrespeito a gestores, atletas desportivos. Não merecem fazer parte desse esporte – esbravejou, sem citar nomes, o presidente da Federação de Futebol de Salão do Estado do Rio de Janeiro (FFSERJ), Manolo Vasquez.

– Esse movimento ilícito provocado por meia dúzia de pessoas com interesses escusos tramita em um terreno perigoso e ilegal, com prejuízos não só para o esporte, mas para os profissionais que vivem da modalidade, bem como patrocinadores e as próprias casas de apostas, que são ludibriadas por tais acertos ilegais. Isso é crime! – completou ele durante pronunciamento oficial da federação duas semanas atrás.

Nessa coletiva, tanto Manolo quando Wagner Vieira Dantas, que é o presidente do TJDFS-RJ, afirmaram que os culpados serão penalizados até se estiverem fora do Brasil. “Não é fugindo ou se escondendo em outra cidade, estado ou país que os problemas vão ser resolvidos”, mencionou Manolo. Wagner acrescentou em seguida: “Pode fugir para o Irã, pode fugir para o Iraque, pode fugir para o Catar, mas cada um vai pagar no limite de sua responsabilidade”.

O carioca Jean Carlos, que esteve no Rio de Janeiro entre junho e agosto (data das primeiras rodadas do Campeonato Carioca), no momento está em Malta, na Europa. Aos 28 anos, ele foi anunciado como novo reforço do Luxol na semana passada. Seu último clube foi o Anorthosis, do Chipre.

CARTEIRINHAS FALSAS

O dirigente do Rio São Paulo afirmou ao tribunal que, no início da competição, Paulo Veltri intermediou seu encontro com Jean Carlos para que ajustassem o resultado da partida contra o Arpão, pela quarta rodada. Nessa ocasião, teria sido combinado que sua equipe seria derrotada.

Em depoimento, ele disse ter ouvido Paulo Veltri por diversas vezes afirmar que havia várias pessoas envolvidas no “esquema” e que “o futsal está entrando nas casas de apostas”. Também relatou que atletas do Arpão estavam apostando nos resultados pré-ajustados (na maior parte das vezes, derrotas) da própria equipe.

O jogo entre Arpão e Rio São Paulo foi marcado para o dia 14 de agosto, na Arena Carioca 3.

Na ocasião, a federação já estava ciente de que poderiam estar ocorrendo irregularidades porque fora alertada por dirigentes da Portuguesa. Excepcionalmente para essa partida, portanto, foram levadas à quadra cópias das fichas dos jogadores contidas nos cadastros da entidade para que fossem comparadas com os dados das carteirinhas apresentadas pelos atletas no momento do duelo. Dessa forma, atestaram que três documentos eram falsos.

As fotos das carteirinhas de Diego da Silva, Matheus Rocha e João Paulo Ferreira, todos eles do Rio São Paulo, eram diferentes das que constavam nas fichas – no caso de João Paulo, por exemplo, uma imagem mostrava uma pessoa de pele branca e a outra, uma pessoa pele preta. O trio por enquanto não prestou depoimento – o inquérito ainda tenta descobrir quem são os jogadores que se apresentaram nos seus lugares no dia da partida.

À esquerda, imagem da carteirinha de João Paulo apresentada no dia do jogo. À direita, a ficha do atleta na federação - ge
À esquerda, imagem da carteirinha de João Paulo apresentada no dia do jogo. À direita, a ficha do atleta na federação – ge

O dirigente do Rio São Paulo explicou à investigação que, naquele dia, alguns jogadores não puderam sair de Barra Mansa, cidade onde a equipe treina. Logo, como havia a obrigação de realização da partida devido ao compromisso com o esquema de apostas, falsificou as carteirinhas para que outros salonistas pudessem atuar. Com eles, a equipe viajou para o Rio de Janeiro com um total de sete atletas.

Diante da evidência de fraude, a anotadora da partida recolheu os documentos e impediu a participação dos três jogadores – ou seja, o Rio São Paulo teria que atuar com três na linha e um goleiro apenas. Neste momento, de acordo com mais de uma testemunha ouvida no inquérito, Paulo Veltri insistiu para que fizessem “vista grossa”. Primeiro, ele teria sugerido que deixassem o confronto acontecer para, no fim, relatar a fraude. Em seguida, o técnico do Arpão teria dito que “ficaria muito feio” se seu adversário jogasse desfalcado.

Em depoimento, Paulo Veltri disse que agiu dessa forma porque era de seu interesse que o confronto acontecesse, já que queria melhorar o saldo de gols, uma vez que sua equipe havia sofrido 27 gols nas primeiras três rodadas.

Por sua vez, um atleta do Arpão disse ao tribunal que achou estranho o fato de dois companheiros de time, ao descobrir o risco de não realização da partida, terem perguntado sobre a possibilidade de igualar o número de jogadores em quadra. Ou seja, sugeriram que ambos os times jogassem com três na linha, o que não aconteceu.

No fim, o Arpão venceu o Rio São Paulo por 3 a 1.

Consta em seu depoimento que Paulo Veltri “não participou, não tem conhecimento e não se vincula a qualquer ato de manipulação de resultados e que também não tem interesses com eventual manipulação”. O treinador admitiu que possui conta em um site, mas que aposta na grande maioria das vezes em jogos do futebol de campo. No futsal, lembra-se de ter feito um único lance. Foi este ano: apostou que a seleção brasileira perderia por 4 a 3 para a República Tcheca na Copa do Mundo (o Brasil venceu por 4 a 0).

“VAMOS QUEBRAR A BANCA!”

Logo na primeira rodada do Carioca, no dia 10 de julho, a Portuguesa venceu o Arpão por 10 a 2.

Técnico da Lusa, Luiz Cláudio da Cunha Gonzaga foi uma das testemunhas que prestaram depoimento no inquérito. Ele contou que, durante o intervalo, quando o placar apontava 4 a 2, foi avisado por pessoas na quadra que o jogo havia sido lançado num site de apostas, com pagamento alto caso seu time vencesse por 12 ou mais gols.

Dirigentes da Portuguesa alertaram a federação de futsal sobre possibilidade de manipulação de resultados no Carioca - Divulgação / Portuguesa
Dirigentes da Portuguesa alertaram a federação de futsal sobre possibilidade de manipulação de resultados no Carioca – Divulgação / Portuguesa

No segundo tempo, à medida que a Portuguesa foi construindo um placar elástico, ele gritou:

“Vou tirar o primeiro que fizer gol, não vou compactuar com placar elevado pra site. No que depender de mim, vamos quebrar a banca”.

O treinador também disse que viu Jean Carlos nas arquibancadas nas duas primeiras rodadas do campeonato, e que o suspeito lhe explicou que estava no Brasil para tratar de lesão em um dos joelhos.

Consta, ainda, nos autos do inquérito o depoimento do treinador de outra equipe que goleou o Arpão no campeonato. Ele diz que, em determinado momento da partida, quando o placar já estava elevado, ouviu alguém na arquibancada gritar: “Falta um!”.

Paulo Veltri disse ao ge que, em função da falta de recursos, a equipe treinava poucas vezes, o que, na opinião dele, explica as goleadas sofridas.

“Eu não tenho, não faço parte e não participo de esquema nenhum. O time não treinava, treinamos cinco vezes só, não ganhei um jogo, nem amistoso. Perdi para o Grajaú, para Itaguaí, Portuguesa, Vasco… A Portuguesa é tetracampeã carioca, e eu treinei só cinco vezes. A gente corre só até onde aguenta. Depois os treinos pararam, começamos a nos reunir só nos jogos. Você pega o tetracampeão carioca, depois pega o vice-campeão… Meu campeonato não era contra esses caras, era contra Itaguaí, Caxiense, Rio São Paulo”, defendeu-se.

Com uma vitória e cinco derrotas nos seis jogos disputados até aqui, o Arpão é o nono colocado do campeonato. Um diretor da federação disse que, com os jogadores que o time tem, a campanha causa surpresa: “Deveria estar, pelo menos, entre os cinco primeiros”.

A própria federação destacou isso em relatório entregue ao TJD, que serviu como base para abertura do inquérito.

– Destaca-se que as partidas tiveram como resultados sempre a derrota para o Arpão, sendo certo que as estatísticas dos atletas que compõem o elenco da filiada são de alto nível, ou seja, são jogadores experientes e com bons posicionamentos em campeonatos anteriores – diz um trecho do documento. (Globo Esporte)