A sociedade moderna vive uma antítese: não conseguir mais ser funcional sem tecnologia e também sofre de tecnofobia (medo da tecnologia moderna). Não é à toa que o ser humano não é condicionado a confiar 100% na tecnologia, apesar de ser dependente dela. A tecnofobia surgiu nos momentos finais para a virada do século XXI, com os experimentos de clonagem e a criação de tecnologias de comunicação e armazenamento de dados, cimentado o que foi denominado como “modernização do cotidiano”.
Nem parece que, em meados do século XIX, os autômatos, ou robôs, se assim preferir, já foram encarados como “a melhor invenção do homem”, o ápice de sua inteligência e evolução. Naquele tempo, um mundo operado por maquinários complexos, com braços reguláveis gigantes, que serviriam para construir desde um automóvel até limpar uma casa inteira, era o suprassumo do retrofuturismo que todos ansiavam.
De repente, esse futuro muito tecnológico pareceu uma ameaça para a existência e necessidade do ser humano. Cresceu o medo humano de ser excedido pela própria criação em setores em que a mão de obra humana é considerada essencial.
O passar do tempo nunca fez o medo desaparecer, muito pelo contrário, ele ganhou um novo fôlego com o aprimoramento da inteligência artificial generativa. Introduzida na década de 1960, a tecnologia é a cada dia mais aprimorada, a ponto de sua prevalência ser tópico central em conferências políticas devido aos limites de uso do seu potencial tecnológico.
A IA generativa se trata de uma inteligência capaz de produzir várias formas de conteúdo, desde textos a áudios sintéticos, em questão de segundos e de maneira quase perfeita. É por essa razão, por exemplo, que dubladores brigam por direitos enquanto suas vozes são clonadas sem consentimento pela IA.
Pagar menos e produzir mais
Até um tempo atrás, a IA era apenas o foco narrativo das histórias do escritor Arthur C. Clarke, explorando temas como previsão do futuro e geração de mecanismos automáticos. Agora, esse tipo de ferramenta significa um mercado global avaliado em US$ 43,7 bilhões em 2023 e projetado para crescer para US$ 967,65 bilhões até 2032, segundo o Fortune Business Insights. O recurso também já consegue transformar coisas e lugares em animações da Pixar, emular vozes de cantores em outros corpos, criar músicas, escrever redações e textos diversos, fazer atendimento virtual e até transações bancárias.
Tudo isso assusta algumas pessoas, sobretudo aquelas que se sentem na mira do processo de extinção ou automatização de algumas profissões, suplantadas pelo poder e predominância tanto de máquinas como softwares cada vez mais avançados. Atores e atrizes do ramo da dublagem estão preocupados com a maneira como o aumento do uso da ferramenta de IA generativa pode prejudicar suas vidas ao replicar suas vozes sem consentimento.
Atualmente, a indústria multibilionária de videogames é responsável pelo sustento de muitos dubladores pelo mundo devido sua alta demanda. O aumento da IA generativa, no entanto, se mostrou uma oportunidade tentadora para algumas empresas cortarem custos e acelerar o desenvolvimento de seus produtos digitais usando a ferramenta para reproduzir vozes sem permissão ou pagamento, reduzindo o valor do trabalho dos dubladores.
A resposta dos profissionais do ramo para a questão tem sido mista. Alguns não se importam de emprestar suas vozes se forem compensados de forma justa e elas não serem mal utilizadas, enquanto outros temem que isso acelere o sucateamento e substituição da profissão.
Silenciados
Em agosto, mais de 300 dubladores de videogames e atores de Hollywood protestaram em frente ao prédio da Warner Bros Studios, em Los Angeles, contra a falta de vontade das principais empresas de jogos em proteger a propriedade intelectual dos dubladores, dos seus trabalhos sindicais e o uso não regulamentado da IA generativa.
“Fizemos acordos com estúdios e streamers. Fizemos acordos sem greve com as principais gravadoras e com inúmeros outros empregadores, que fornecem consentimento informado e compensação justa para nossos membros”, disse Duncan Crabtree-Ireland, diretor-executivo nacional do Screen Actors Guild-American Federation of Television and Radio Artists (Sag-Aftra) à Associated Press. “No entanto, por algum motivo, as empresas de videogame se recusam a fazer o mesmo, e isso vai ser nossa ruína.”
O protesto e a subsequente greve foi o resultado de mais de 18 meses de negociações do sindicato com gigantes da indústria de jogos online sobre um novo acordo de mídia interativa paralisado por proteções em torno do uso indiscriminado de IA.
Para Crabtree-Ireland, a verdadeira crise existencial dos dubladores de jogos é considerada uma ameaça igual ou até maior para eles do que para os artistas de cinema e televisão. Sobretudo porque a indústria não considera todos os artistas que cedem suas vozes ou imagem como profissionais resguardados pelo acordo coletivo, portanto, é fundamental para eles entender quais são os critérios usados pelos estúdios para definir quem é ou não artista. Enquanto isso, eles são mal pagos, despejados de suas casas e silenciados pelo uso escuso da IA.
(Publicado originalmente no MegaCurioso)