Após um ano de debates, ao longo do qual ocorreram mais de 30 audiências públicas e amplo debate social, o Congresso Nacional finalmente aprovou o Projeto de Lei Anticrime. Naturalmente, a proposta inicialmente apresentada pelo Governo foi modificada, levando em consideração diversos fatores, dentre os quais outras discussões a respeito da legislação processual penal na Câmara e no Senado.
Assim, embora tenha clara identificação com o Projeto de Lei Anticrime, a Lei nº 13.964/2019 também veicula contribuições de Projeto de Lei de autoria do atual ministro Alexandre de Moraes e do Projeto de Código de Processo Penal que foi aprovado no Senado Federal, além de tantas outras propostas. Apesar da amplitude do debate, a figura do “Juiz de Garantias” tem sido objeto de especial crítica.
Em artigo publicado, o Procurador da República Roberson Pozzobon conclui que “juízes de garantia causarão garantia de impunidade”, afirmação feita no título de seu texto. De forma objetiva, foi apontado que o sistema judicial brasileiro encontra-se assoberbado de processos e que a criação de sistema de rodízios de magistrados acabaria potencializando a mora na prestação jurisdicional, assegurando, portanto, a impunidade. Assim, o artigo ressalta que a realidade brasileira não permite a introjeção da figura do “Juiz de Garantias”.
Pois bem. Ao introduzir o Juiz de Garantias no processo penal brasileiro, a Lei nº 13.964/2019 segregou a fase de supervisão judicial de investigações criminais da outra fase processual penal, que reside na supervisão da produção de provas e de prolação de sentença. Referida divisão na atividade de prestação judicial encontra-se presente não apenas em vários países da América Latina, como Argentina e Chile, cujos orçamentos para o Poder Judiciário são muito inferiores ao brasileiro, como também em Portugal, na Espanha, na Itália e, ainda, nos Estados Unidos.
Claro que argumentos de direito comparado não são intocáveis, mas eles têm seu valor. Se não fosse assim a própria Força-Tarefa da Lava-Jato, a qual é integrada pelo Procurador Roberson Pozzobon, não teria, há pouco menos de um ano, defendido a execução provisória da pena após confirmação de condenação criminal em segunda instância apontando ordenamentos jurídicos de outros países que a admitiriam.
Curioso é que, naquele momento, era a Força-Tarefa que rejeitava os argumentos financeiros a respeito do custo do cárcere, utilizados por aqueles contrários à implementação dessa acepção jurídica. Agora, são os membros da Lava-Jato que apontam suposto aumento de custos para alegar a incongruência do “Juiz de Garantias”.
A contradição entre os argumentos utilizados revela a necessidade de desmistificação dessa figura. É preciso, sem dúvida, ir além dos tradicionais argumentos de direito comparado e de custos de implementação.
A história remota ou recente do Brasil demonstra que todo juiz é um juiz de garantia. Então, para que serve a figura do Juiz de Garantias? Para proteger o magistrado de sua natureza humana. Leon Festinger, Professor da Universidade de Michigan e Pesquisador do MIT, realizou estudos a respeito do comportamento humano ao longo de toda a sua carreira.
Dentre as teorias que formulou, Festinger foi notabilizado pela “Teoria da Dissonância Cognitiva”, a qual pontua, em suma, que é condição inata do ser humano a predisposição por validar hipóteses que já foram anteriormente por ele analisadas, superestimando elementos supervenientes que confirmem essa predisposição e subestimando aqueles que a invalide.
Por sua vez, Bernd Schünemann, professor catedrático da Universidade de Munique e ex-consultor do Parlamento Alemão, desenvolveu estudo empírico com magistrados de seu país. Como conclusão, Schünemann demonstrou existir na atividade jurisdicional o que denominou de “Efeito Perseverança” e “Princípio da Busca Seletiva de Informações”.
O Efeito Perseverança consiste no fato de que “as informações, previamente tomadas como corretas à ratificação da hipótese preconcebida, sejam sistematicamente superestimadas, enquanto que as informações dissonantes sejam sistematicamente subavaliadas”. Por sua vez, o “princípio da busca seletiva de informações” favorece “a ratificação da hipótese originária que tenha sido, na auto compreensão individual, aceita pelo menos uma vez”.
A segmentação das atividades jurisdicionais mitiga, portanto, os deletérios efeitos das constatações feitas por Festinger e Schünemann. Não por outra razão, em 1994, a Associação Internacional de Direito Penal, composta por juízes, promotores e advogados de vários países, fixou como recomendação “que a fase de investigação deva ser levada a cabo por uma entidade distinta daquela a quem cabe a fase do julgamento. Assim, o juiz do julgamento não deve participar em atos das fases anteriores. É ainda altamente recomendável, que o juiz do julgamento seja distinto daquele que decide sobre o recebimento da acusação”.
Para além de ser utilizada em diversos países, a introdução do Juiz de Garantias representa, sim, um avanço no Direito Processual Penal brasileiro. É o que pensam vários de nossos juízes, como o Desembargador Federal Nino Toldo, ex-Presidente da Associação de Juízes Federais. Evidente, todavia, que a concretização desse novo postulado legal com a realidade demandará uma reorganização do Judiciário.
Especificamente quanto a eventuais custos que advirão dessa medida, fato é que não se está a criar uma nova tarefa aos Magistrados penais. A atividade de supervisão judicial da investigação criminal já era feita pelo Poder Judiciário. A Lei nº 13.964/2019 apenas determina um rearranjo de uma das incumbências que já era dos Magistrados brasileiros. Não há, portanto, necessidade de contratação de novos juízes, tampouco de novos servidores ou ampliação de prédios. Foram essas as conclusões das primeiras discussões do Grupo de Trabalho criado pelo CNJ para tratar do assunto.
A figura “Juiz de Garantias” é instituto consolidado mundialmente e que permeia o ideário do legislador brasileiro há anos. Não se trata de uma jabuticaba, mas de decisão abalizada e democrática dos Poderes Executivo e Legislativo, em face dos comprovados riscos e desvios decorrentes da confusão entre os papeis de investigar, acusar e julgar. Críticas ao instituto a partir de alegações vazias sobre impunidade e altos custos servem tão somente para indicar quem eram os beneficiários de tal confusão.
*RODRIGO BITTENCOURT MUDROVITSCH é Doutor em Direito do Estado pela USP, Professor de Direito Público, advogado e membro da Comissão de Juristas responsável pela Lei de Improbidade Administrativa.
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