Um dos bicheiros mais conhecidos da história do país, Castor de Andrade teve boa parte de sua vida atrelada ao Bangu Atlético Clube, que viveu seu auge impulsionado pelo dinheiro e pela influência do contraventor nos anos 80. Então presidente de honra da equipe, Castor despertava ao mesmo tempo medo e admiração em seus comandados.
No dia a dia, era possível, por exemplo, ver o mandachuva do clube dar tiros na concentração e entregar malas com dinheiro vivo aos jogadores. Com os árbitros, o contraventor tinha relação peculiar, das agressões aos mimos financeiros.
O Globoplay lançou nesta quinta-feira os quatro episódios do documentário “Doutor Castor”, que conta toda a história de Castor de Andrade. Na sexta e no sábado, o ge publicará mais duas reportagens sobre o bicheiro, uma por dia
Castor de Andrade, presidente de honra do Bangu nos anos 80 — Foto: Reprodução / Globoplay
Formado em Direito pela UFRJ e chefe da banca de jogo do bicho na Zona Oeste do Rio de Janeiro, Castor herdou o amor pelo Bangu do pai Eusébio de Andrade, o Zizinho, presidente do clube nos anos 60.
Foi nessa época que ele deu a primeira amostra do que seria capaz de fazer pela equipe. Vice-presidente de Futebol na gestão do pai, Castor entrou em campo armado num jogo contra o America no Carioca de 1966 para cobrar o árbitro, que havia acabado de marcar um pênalti para o adversário.
Os seguranças retiraram Castor do gramado do Maracanã, e o America converteu a cobrança, empatando a partida. Já aos 45 do segundo tempo, Paulo Borges caiu aparentemente sozinho na área, e o mesmo árbitro deu o pênalti para o Bangu. Meia daquela equipe, Jaime conta o que lembra:
“Quando o Cabralzinho vai para a área para bater o pênalti, o juiz vai junto. Ele fala: “Cabral, pelo amor de Deus, faz esse gol”.
Mas nem todo juiz sofria com o dirigente, conforme relata o ex-árbitro Luiz Carlos Gonçalves, o Cabelada.
– Ele sempre foi muito atencioso com a arbitragem. Tinha um bufê no vestiário dos árbitros. Quando era a minha vez, um dos assessores dele botava um isopor com 24 cervejas bem geladas.
Cabelada admite que sua atuação em determinados jogos do Bangu foi influenciada pela presença de Castor de Andrade.
– Aos 47 minutos do segundo tempo, jogo tranquilo, tudo definido, o Gilmar (goleiro do Bangu) subiu numa bola e demorou. Eu fui pedir: “Gilmar, por favor, repõe”. Ele continuou. Me irritei e falei: “Gilmar, repõe essa p…”. Eu parti, cheguei a um metro e meio dele, puxei o amarelo. Quando dei o cartão, doutor Castor, sentado no banco de reservas, gritou: “Cabelada, esse não, ele tem dois”. Aí rodei para o lateral-esquerdo e ouvi: “Ele também tem dois”. Eu falei: “Doutor, dou essa m… para quem?”. Virei e dei para o lateral-direito.
Cabelada, ex-árbitro de futebol, é um dos entrevistados no documentário “Doutor Castor” — Foto: Reprodução / Globoplay
O ex-árbitro revela que Castor não tinha contato direto com os árbitros. Um de seus emissários, segundo Cabelada, era Eduardo Viana, o Caixa D’Água, presidente da Federação de Futebol do Rio de 1984 até sua morte, em 2006.
– Carlinhos Maracanã (bicheiro) era o tesoureiro. Doutor Castor passava uma verba para ele semanalmente para jogos do Bangu. Era uma coisa automática. Segunda ou terça-feira, se o Bangu ganhou, tinha um cala-boca. O quadro de arbitragem do Rio de Janeiro tinha medo de prejudicar o Bangu.
Violência e armas
Durante a década de 80, quando deu as cartas no Bangu como presidente de honra, Castor frequentemente usava violência e armas de fogo para impor respeito. Como recorda Dé Aranha, atacante da equipe entre 1982 e 1983.
– O Marco Antônio (lateral campeão da Copa de 1970) era um cracaço, mas nunca gostou muito de treinar. Um pouco preguiçoso, gostava de um samba, da noite. Mas tinha que estar de manhã cedo no treinamento. Um dia, tinha aquela rodinha de bobo no campo, e o Marco Antônio, em vez de participar com a gente, tinha uma baliza móvel, o Marco encostou ali, botou a cabecinha para o lado e puxou um ronco. Saí da rodinha e chamei o Castor. Ele desceu, chegou a uma distância do Marco Antônio de seis a oito metros. Abaixou, pegou uma pistola que ele usava na perna e soltou o dedo: PLAU PLAU! Atirou quatro dedos acima da cabeça do Marco Antônio – conta Dé Aranha, antes de completar:
Goleiro do Bangu nos anos 80, Gilmar também recorda uma história parecida.
– Uma bela tarde, a gente estava na Toca do Castor (concentração do clube), ele se aproximou da gente. O Moisés falou: “E aí, grande doutor Castor, vai deixar aquele dinheirinho?”. Ele falou: “Vocês querem dinheiro?”. Aí ele pegou a mala executiva dele, tirou uma metralhadora de dentro, uma portátil, e deu uma rajada na parede. Não sobrou um cara, só via nego se levantando, correndo para os quartos…
Por outro lado, Castor de Andrade também era conhecido pela vaidade – não à toa mandou bordar um castor no uniforme de jogo da equipe – e por distribuir dinheiro entre os jogadores seja lá qual fosse o motivo. Dava muito “bicho”, que eram os pagamentos por premiações, mas também tinha o hábito de atender a um pedido ou outro – desde que estivesse de bom humor. E só com dinheiro vivo.
– Se você fosse um baba-ovo do Castor e ele gostasse de você, você tinha tudo com ele. Agora aqueles que não iam lá pedir, ficavam à margem e às vezes nem cumprimentavam o Castor tinham um preço a pagar – conta Dé Aranha.
Castor de Andrade era tão vaidoso que mandou bordar um castor no uniforme de jogo do Bangu — Foto: Reprodução / Globoplay
“O salário era pequeno. Mas os bichos… Posso garantir a vocês que eu ganhava 20 vezes mais de bicho e nas mordidas que eu dava no Castor por fora (risos) do que com o salário que eu ganhava no Bangu”, completa o ex-atacante.
– No primeiro contrato com o doutor Castor, eu assinei e fui para casa – explica o ex-centroavante Cláudio Adão, contratado pelo Bangu em 1984. – Depois ele chegou lá em casa com uma bolsa de dinheiro. Disse: “Palavra é palavra”. E jogou a bolsa pra mim.
– Quando me transferi do Palmeiras, fui para a Toca do Castor. No dia seguinte, quando acordei, um senhor bateu na porta, perguntou: “Você é o Gilmar?”. Eu falei que sim, ele disse: “O doutor mandou te entregar isso”. Me deu uma caixa de uma marca esportiva. Eu pensei: “Aqui o negócio funciona, cheguei e já me deram chuteira”. Quando abri a caixa, era o dinheiro que ele tinha prometido de luvas. Fui ao banco, os caras davam risada – conta Gilmar.
– Ele sentava, botava a pistola em cima da mesa e abria a mala. Mala de couro de jacaré. Era dinheiro para todo lado. As notas grossas ficavam na mala. Aquele mala era fantástica, lindo, lindo, lindo – diz o ex-atacante Macula.
Auge do Bangu
Comandado pelo bicheiro, o Bangu viveu tempos gloriosos. No início dos anos 80, a equipe se colocou entre as potências do Rio de Janeiro e passou a dar as caras também no cenário nacional.
Os resultados do Bangu de Castor de Andrade no início dos anos 80 — Foto: Reprodução / Globoplay
O técnico do time era Moisés, ex-jogador e homem de confiança de Castor. Mas era o bicheiro que dava as ordens e até escalava o time.
– Teve um dia que o Castor não pôde ir. O Moisés pegou um papel e leu o primeiro nome: “O time vai jogar com Tobias…”. E aí, quando foi ler a linha de baixo, ele não entendeu. Mexeu no olho, não estava enxergando nada. Aí ele soltou essa: “Poxa vida, está cada vez mais difícil entender essa letra do Doutor Castor (risos)”. Isto é, o time já vinha escalado, o Castor dava ao Moisés o time que ia jogar – conta Dé Aranha.
O Bangu daquela época tinha Dé Aranha, Arthurzinho, Ado, Marinho (que foi para a seleção brasileira) e companhia. E a equipe por muito pouco não foi campeã brasileira. Na Taça Brasil de 1985, o Bangu passou por todos os seus adversários, incluindo Internacional e Vasco. Na semifinal, contando com a influência de Castor de Andrade, que tirou de Pelotas o primeiro jogo contra o Brasil-RS e levou para Porto Alegre, o time alvirrubro passou com vitórias nos dois jogos.
“Eu trocaria tudo… (lágrimas) pelo título. Eu sou frustrado pra caramba por isso. Eu sinto muito”.
Ado, ex-atacante do Bangu — Foto: Reprodução / Globoplay
Em 1988, com o elenco já enfraquecido, o Bangu acertou a contratação do zagueiro André Luís. Ele lembra a surpresa ao chegar ao Rio.
– Me falaram: “Olha, o doutor está preso, vai receber vocês dentro da cadeia”. Entramos, eu olhei aquele pátio grande, ele estava numa cela especial. Meu contrato foi assinado dentro da cadeia, dentro da Polinter.
Durante os meses em que Castor esteve preso em 1988, o ônibus do Bangu tinha parada obrigatória na cadeia antes das partidas. Os jogadores desciam para visitar o patrono, que pedia a vitória e prometia prêmios em dinheiro.
Na virada para a década de 90, o dirigente se afastou do clube, que nunca mais voltou a brigar por posições de destaque no futebol carioca. (Globo Esporte)